quarta-feira, 12 de março de 2014

Tiago Patrício: A Literatura e a leitura da luz

O Homem Desempregado gostava muito de ler e tinha um cuidado extremo com o
tipo de luz que seleccionava para a leitura, preocupava-se tanto com este assunto
que muitas vezes se esquecia do que estava a ler e murmurava satisfeito:
– Como é boa esta luz para acompanhar uma leitura.
Passava manhãs inteiras ou semanas à volta da mesma página que tanto podia ser
de filosofia política como de uma lista da toponímia da sua cidade e nem dava conta
da perda de validade de certos livros requisitados nas bibliotecas, o que deixava os
funcionários muito aborrecidos.
Raramente lia à noite, só em último caso, em especial livros de instruções para
alguma tarefa imprescindível ou algum telegrama que lhe chegava depois do
crepúsculo.
Na casa onde morava tinha uma luz franca que iluminava os textos e as suas ideias
mais complexas, mas a partir de uma certa hora o sol deixava de bater na sala
virada para Sudoeste e tinha de sair de casa à procura do poente como de
alimentos para a dispensa. Dobrava a esquina e entrava num largo que se abria
num miradouro sobre o rio, com alguns bancos de jardim que lhe agradavam
sobremaneira. Assim, nos dias amenos, o Homem Desempregado descia as escadas
do prédio e saía para a rua com um livro forrado a papel de jornal debaixo do
braço. Passava por baixo de duas árvores e procurava um lugar com espaço para si
e para o seu livro, entre os grupos de pessoas já instaladas.
Sentava-se cheio de boa disposição, pedia licença e agradecia a amabilidade a
todos aqueles que faziam companhia ao entardecer. Aconchegava o olhar até ao
outro lado do rio, para ficar com uma boa visão periférica e fazia inspirações
semibreves de contentamento. Porém, após ultrapassar as três ou quatro páginas
do seu livro da tarde, começava a ficar incomodado com o excesso de ruído que
não lhe permitia ler sem estar sempre a perder-se com os estímulos, especialmente
com os daqueles que tinham chegado pouco tempo depois dele e já eram
considerados intrusos. Nessas alturas o Homem Desempregado lembrava-se de que
a intolerância aumentava com a permanência e o apego aos lugares. Após longas e
espaçadas inspirações conseguia voltar à leitura da luz, sem contudo deixar de sentir uma certa benevolência por aqueles que conversavam no largo do miradouro
sobre a sua leitura.

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Tiago Patrício, in Cráse número 1.

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