sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Beatriz Hierro Lopes

Como fome

Fosse cinza, antes cinza, mas não. Nem cinza. Que não há cinza que chegue para cobrir de branco as ruas, as ruas que conheceste (ainda te lembras das ruas que conheceste?) levando vestido o lado avesso da cinza, que já não é o cinza branco em que cresceste, não, outro cinza de negro investido. E as ruas, as ruas que chamaste, como mulheres, e é já velha a memória, como braços pernas jardins de olhos amendoados, canteiros de ervas ruivas que eram ruivas ao sol, via-las ruivas com o rosto na relva de quando caias de bicicleta, e agora, agora, sem braços sem pernas os olhos perdendo a amêndoa figos secos engelhados negros como os canteiros que alguém deixou à fome. E há fome nesta rua. Nesta rua que, lembras-te?, já foi tua. As floristas sem flores, de portas fechadas e lá dentro, (espreita, espreita à janela) os vasos sem terra só cinza vestida de negro e aranhas de pernas estendidas no ar, viram-se de costas as aranhas e os insectos moscas varejas sem alimento, enchendo o fundo do vaso. Os plásticos de cores berrantes enrolados à volta dos cilindros de metal, soterrados pelo pó como os palhaços, sim, as caras pintadas dos palhaços, que agora, bem visto, que eram velhos no teu tempo, agora mortos, que é do teu tempo a morte dos palhaços que viste no circo dos teus cinco anos.
As portas fechadas. Todas as portas fechadas, a verde, a azul que tanto gostavas por ser um azul mais denso que o azul a que estavas habituada, a vermelha, a vermelha também, que na tua rua havia uma porta vermelha e tu pequena com medo da porta vermelha, porque não era humano aquele vermelho mais aberto que o sangue, vermelho medo de mal pisado aos pés daquele homem, que era santo, e de cujo nome não te lembras mas sabes, sim sabes, que dele havia estátua na igreja do teu colégio e que tinhas medo medo de o olhar porque o homem que pisava o vermelho mal tinha uns olhos estranhos que reflectiam o branco da lança. Olhos todos brancos, tu perguntando à tua mãe, Mãe é possível ter brancos os olhos?, e a tua mãe respondendo-te que não, que só os mortos tem brancos os olhos. E tu imaginando que o homem que matava o vermelho caixão aberto era um morto e que só por ser morto podia matar a morte vermelha aberta como a porta que na tua meninice estava sempre aberta (não não espreites) e agora fechada, com o vermelho desbotando-se num tom de castanho que te dá mais medo do que dava quando eras criança, e sem querer pensas que a morte naquele lugar é a morte mais morte do mundo porque tem a cor da terra seca em que as flores morrem.
E em que as floristas desaparecem. E sabes de cor o nome de cada uma. O tom da voz com que te dava os bons dias, sem voz, vestindo de negro cinza as montras de aranhas estendidas, pensas que tudo se encerra onde começou, que há um ponto na rua, que é a tua, em que tudo começa e acaba. Lá, depois dos olhos que eram amendoados e dos canteiros de cabelos ruivos, sobre o crânio da rua separado por grades, e por momentos vês a rua a rua que a tua história te deixou, viúva. Rua de negro cintando-lhe o ventre e a garganta que sempre as imaginaste assim, viúvas de vestido longo e gola comprida, sem pele a não ser a do rosto e das mãos. Quanto mais morte menos corpo, disse-te a tua mãe. Estás no fim da rua e ao olhares para o início vês toda a rua, vestido longo de luto, e acreditas como acreditavas ao olhares os olhos brancos daquele que pisava matava o vermelho aberto, que talvez o luto da tua rua tenha descido dos teus olhos. Que os levas brancos memória velha da rua cinza branca. Como o avesso do negro. Tudo o que te morreu. A ti. Que a levavas ao peito como a flor que roubavas aos canteiros quando te portavas mal e querias pedir desculpa a tua mãe, Desculpe mãezinha, olhe é para si.
No fim da rua olhando o início. Os canteiros sem flor, tu sem flor, vestindo um negro mais negro que o da rua, o tempo em que os palhaços, as floristas, os santos, te olham com o olhar branco, do fundo da sepultura que se abre na bainha do teu vestido. Tudo o que te cai, tu caindo, e para trás, lá bem atrás, a relva de quando caias de bicicleta, sem bicicleta só escuridão pouco corpo, de pé, olhando o chão como se levasses o rosto caído no chão sob o peso dos teus pés que já não são os pés doces algodão do teus doze anos. Frios, aranhas de pernas estendidas de costas olhando o rebordo do vaso, que sim, era branco, sempre branco, porcelana branca. Como dentes. Os dentes que te caíram de leite e que tos guardaram na caixa de pó de arroz da tua bisavó. E, por instantes, sentes falta dos teus dentes de leite pequenos e pedes, dentro de ti, como fome, Dê-me mãe dê-me de volta os meus dentes brancos de quando os palhaços eram vivos e havia flores nos canteiros.

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