Contemplação
sento-me na margem da tua infância
e recupero o gosto pelo esquecimento.
as minhas mãos traçam o momento
em que o teu corpo aberto colide com o mar.
imagino o oceano em que te deitas
e a forma como
a tua boca de areia se alarga
até à Praia da Vieira.
imagino os rascunhos de memória
que as horas vão largando
ao longo do caminho.
sinto-te um prolongamento do meu pensamento,
pensamento de água
volátil como a noite que te abriga,
fragmentário como o cheiro do teu nome de flor.
a luz apagou todos os vestígios da terra que nos escorre dos olhos,
deixou-nos entregues à substância húmida do abandono
aos caminhos modernos das várias formas de embriaguez letal.
embriaguez no centro de todas as coisas visíveis,
queimadas ao longo dos extensos pensamentos matinais.
escrever revela-se tão volátil como esfaquear-te,
se é que me entendes.
vivemos na mesma esfera de fogo que acompanha o balanço dos
[enforcados.
o gelo aproxima-se da boca
enquanto despertamos de todo o cansaço
e contemplamos as insónias enferrujadas
por dentro das imagens.
esquecemo-nos de vigiar a natureza quando a realidade tem problemas
ao nível do hardware.
observa, o ar gera filhos nos poros do tempo magro,
a alienação cria escamas firmes pela pele.
por dentro de todas as palavras abstractas
encontramos água
e o peito da terra respira um medo fragmentado.
os gestos nervosos das ruas anestesiam-nos diariamente.
Sara F. Costa: in "Criatura número 1" - Fevereiro 2008.
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