No wonder we found ourselves rootless
Gregory Corso
Sou bisneto de um tal Ishmael Veilchenduf, judeu germânico-falante,
que em tempos negociou peles de animais exóticos
e bibelôs de cristal algures nas margens do Vístula,
privando ocasionalmente com a alta sociedade de Varsóvia.
Diz-se que deu à primeira filha o nome dos sonhos que ficaram por cumprir,
quebrando com isso uma linhagem milenar de princesas de sangue negro,
o que nunca foi verdadeiramente perdoado pelas mulheres da minha família,
habituadas a quase tudo desde que não envolvesse um pouco de decepção.
A minha bisavó, conhecida como Mary nos seus tempos de prostituta,
nunca voltou a observar-se ao espelho depois de casada,
talvez por medo aos demónios ou simplesmente a ver-se demasiado gorda.
O meu sangue andou por bordéis no norte da Europa e participou
activamente na compra e venda de carne tão branca que,
no passado, teria sido considerada aristocrática e enferma.
A minha irmã, de nome grego e impuro, escolheu ser vegetariana,
em forma de protesto para com esta ascendência judaica,
bárbara através das mãos, obcecada em sangrar
pequenos animais peludos até à última gota. Tem, tal como eu,
os olhos verdes e toda a espécie de amor que eles podem conter,
herdados de uma mulher que não cantava suficientemente bem
como para enganar a vodka e outras certezas num café perto da Syrenka.
O meu bisavô Ishmael apreciava várias espécies de miudezas de aves,
grelhadas ou fritas em azeite importado de Espanha
pela Sociedade Guzmán&Hijos com domicílio social em Barcelona.
Talvez por isso, eu tenho o cabelo desta cor que vem de dentro,
como o sangue que me escorre dos lábios em noites de violência.
Sou excelente como carnívoro, sustentado a músculos, tendões e,
com um pouco de sorte, corações de animais
que a minha raça já chegou a considerar como irmãos
nos tempos de C. e outros idólatras.
Um dia vesti um casaco de zibelina de Esther
e exagerei na pintura dos lábios com o ciclo de sangue da minha irmã mais nova,
detentora de bonecas associadas à decadência erótica dos nossos tempos.
Atravessei a cidade e toda ela me pareceu fantástica:
as mulheres de seios estavam cobertos pela sombra de Wiene,
os meus irmãos a fluir pelas ruas com o aguado sangue de Abraão
que transportam nas veias, alheios às péssimas condições climáticas
apresentadas pela tristeza nestes dias que correm...
De repente, um grito atravessou o céu e senti o seu cheiro agre.
Tomei-o por divino: eu caminhei lado a lado com Enoch.
Meus Senhores, foi isso que consegui em vez de me sentar
na cadeira do meu pai a escrever um poema
sobre aquilo que Pilatus disse aos judeus formalistas
no lugar em que os inimigos de César eram crucificados.
David Teles Pereira, in "Biografia" - Língua Morta:2010
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