sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Luísa Marinho



Um Blues Nem Sempre é Triste





O texto que se segue requer algumas observações prévias. Escrevi-o na segunda metade de 2005, tendo
como princípio a correspondência trocada entre dois portugueses que vivem afastados: um em Berlim
outro em Nova Orleães. Depois de ter escrito algumas cartas, comecei a ficar sem ideias, sem saber
como arranjar um final, se é que tinha de ter algum final... Depois acontece o inesperado. Em Nova
Orleães, o furacão Katrina provoca um terrível drama humano. Infelizmente, tive matéria para terminar
a correspondência... As três últimas cartas foram já escritas depois do furacão.



Nova Orleães, 5 de Julho de 2005


Uma vez disseste-me que gostavas de escrever canções de amor em noites quentes. Hoje
está um calor de inferno. Gostava de ser como tu e transformar o calor em música. Que
desperdício o inferno quando estás longe. Gostava de te ouvir dizer que aí também
transpiras e que sem ar condicionado te custa dormir. E que te sentas em frente a um
piano desafinado e fazes um blues. Comigo a música acontece quando ao regressar a
casa, ao fim da tarde, vejo o calor a levantar-se das pedras e todo o ar cheira a
queimado. São os fins de tarde em que, na minha cabeça, sou um negro sem correntes, e
corro pelos campos de algodão que pus a arder gritando “liberdade”, num tom ritmado
de esperança e dor. Sei que do outro lado está o rio, mas a minha liberdade não tem
objectivos. E desapareço nas chamas ao som dos cânticos da sanzala, que ouço ao
longe. Chego sempre a casa com uma sensação inútil de desejo. Inútil porque não o
transformo em som, porque as palavras – estas palavras – são poucas e desajeitadas para
dizê-lo. E porque penso que, se calhar, nem sequer vais ler esta carta.
Um abraço,
A


Berlim, 13 de Julho de 2005


Só existes tu nas noites de canções de amor que não chego a escrever. E, por
consequência só existo eu. Não importa se há quem se julgue mais privilegiado, mais
completo. Poder dizer-te que é bom ter música na ponta dos dedos sabe-me a um
milagre. Gosto das tuas palavras ajeitadas e reconcilio-me sempre com os teus abraços.
Dizes que gostavas que as notas te saíssem harmoniosamente. E eu respondo-te que
gostava de ser esse negro a correr pelos campos de algodão. Mas tenho de me resignar a
fazer a banda sonora, apenas. E o pior é que as canções de amor tardam. Aqui o calor
não é muito e as florestas estão demasiado longe para se deixarem ouvir morrer. Há
muito silêncio por estas paragens. Tanto que custa interromper. O meu piano continua
afinado, à espera de melhores dias. A liberdade é também paciência.
Um abraço,
B


Nova Orleães, 18 de Julho de 2005


Os teus abraços são também liberdade. Se me esperares com a porta da sanzala aberta,
juro que não desisto até te levar comigo para a beira do rio. Deixamos o coro e as suas
lamentações para trás. Já não me importaria com a música e a sua espiritualidade se
apenas precisarmos dos nossos braços entrelaçados para chegarmos a um princípio mais
fresco. Nunca pensei que a música na ponta dos dedos te acorrentasse. Mas agora que o
sei, peço-te desculpa pelo meu lamento. Podemos viver sem blues, se quiseres. Ao fim
ao cabo, é melhor deixar a tristeza nos campos de algodão.
Um abraço,
A


Berlim, 25 de Julho de 2005


Compreendo, pelas tuas palavras de compaixão, que ignoras que não existem destinos
forçados. Os abolicionistas não fizeram mais do que estar a meio do caminho dos
libertados. Vou continuar no meu quarto de derrota, onde não podes chegar, apenas
porque não sabes como ou porque não te soube eu mostrar o caminho. Mas não te
preocupes. Um blues nem sempre é triste. E é sempre possível quebrar a corrente do
medo. E perceber, finalmente, que não é a harmonia dos sons mas a sua intensidade que
nos comove.
Um abraço,
B



Nova Orleães, 30 de Julho de 2005



Não é a harmonia nem a intensidade dos sons que me comove, mas o seu desencontro.
Acreditas mesmo num destino antes de ti, eu não. Mas admito: a vontade de querer
forçar o destino é imprudente e megalómana. Nunca acreditei noutras entidades que não
o indivíduo. No meu mundo não existem pares, nem grupos, nem famílias ou
agregações. Então porquê a minha necessidade de partilha, de querer libertar-me
contigo? Esta cidade é estranha. Vivo o seu quotidiano de uma forma apaixonada, mas
não te consigo falar dele. Construo imagens de cenários possíveis e nestes, trabalho a
minha imaginação e o que me liga a ti. Os arrebatamentos surgem em estados de
espírito assim. Quando leio as tuas cartas é quase sempre de noite e já passei pelos bares
de sempre onde o embaraço da descontracção alheia me faz fugir. Começo a achar que a
distância propicia o controlo. Este será, talvez, uma arma de defesa. Ou de arremesso.
Como o amor.
Saudades,
A



Berlim, 5 de Agosto de 2005


Talvez os apátridas se procurem em todos os gestos quotidianos. Lembro-me que no
passado Abril, corri todas as floristas para comprar um cravo. Não encontrei. Não sei
como se diz cravo em alemão. Também procuraste um, no passado Abril?
Abraço,
B


Nova Orleães, 12 de Agosto de 2005


Hoje tropecei num mendigo negro que pedia sentado à porta de um café. Caí e praguejei
em português. Ele olhou para mim e ajudou-me a levantar. Tirei um dólar do bolso para
lhe dar, mas ele abanou a cabeça numa expressão de cansaço e virou costas. Senti-me
frágil e inútil como se tivesse deixado de compreender tudo, ou como se tivesse
começado a compreender tudo. Não sei de que lado estou, se tenho sorte ou azar, se
pertenço ao grupo dos privilegiados ou ao dos que nada têm. Por isso, estou à margem
de tudo, entre lucidez reveladora e a dúvida insolúvel. Entre o céu e o inferno, o melhor
sítio para se estar, como diz um blues antigo. Não estava assim em Abril passado,
quando pedi à minha vizinha do lado que me desse um dos cravos vermelhos que
cultiva no canteiro em frente a casa. Perguntou-me para que o queria e eu falei-lhe da
revolução. Disse-me que o seu país também precisava rápido de um Abril, o que me
comoveu. No dia seguinte, ao passar pela sua janela, vi que tinha posto um cravo numa
jarra e o exibia em cima da cómoda. Tem chovido muito por aqui. Já não sinto o cheiro
da madeira queimada.
Abraço,
A




Berlim, 30 de Agosto de 2005
Pergunto-me se ainda vives. Ainda vives?
Saudades,
B


Nova Orleães, 15 de Setembro de 2005
Queria escrever-te até esgotar a musicalidade das frases. Percorrer todos os sentidos de
palavras como “cravo”, “liberdade” ou “utopia”. Mas a água inundou o papel e a caneta.
As palavras já não são palavras, são desespero. Deixei de lhes sentir o sabor, de as
saber. Ainda vivo, não sei como… e no meu barco já não cabem mais crianças
naufragadas. Faço parte dos que nada têm, agora sei-o.
Abraço,
A


FIM

Luísa Marinho

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