segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Ivan Strpka

Pegadas de pássaros


I.

Tudo está na margem. A árvore
Diverge de si própria por baixo do peso do anseio
Para gerar uma nova árvore,
Dentro da maçã uma nova maçã se gera,
As portas estão cheias de portas
e o dia faz nascer
outro dia sobre o caminho semi-cego.


II.


A minha cabeça no jardim está cheia de neve que irá cair
Pegadas de pássaro guiam-nos através dela, simples e indiscutível,
de margem a margem.
Por baixo da neve a concha azul rebenta.


Adeus, olhos azuis

As minhas orelhas estão cheias
do refluxo suave do mar.
ouço os cortes do fundo
dos corpos vazios
e do vidro indigo



O passado de uma pausa


E a casa era muitos-cantos
E desconhecida e branca
Transparentemente estrangeira
(sem pegadas)

Um caminho de terra para as coisas cegas
corre através da relva…



Tudo na concha


1/

Tudo na concha – Disse a criança. Pelos nossos objectivos deixamo-la tomar isso como um facto.
Nós vamos emergir do ovo. Nós vamos emergir da metáfora. A incessante disputa com a concha é a força motora dos nossos dias. Eu vi esse dia antes de mim. O ranger dos pés em prosa, compondo e descompondo numa sucessão do estremecer dos fragmentos.
Essa confusão da vida de areia rodopiante.

Eu vejo as tribos que não dormem dos guardiões da concha, espalhadas na areia que arde e nas bocas do desfile que assobia. Os seus cotovelos secos e afiados, as suas pálpebras afiadas, os seus olhos-brancos pequenos através do silêncio nervoso da miopia. As suas relações escondidas com os jogadores do jogo que prolifera, que abranda até ao infinito.
Na luta pela imaginação há uma luta pela concha. Luta com a concha. Luta na concha.


2/

A janela está iluminada. Fora do crepúsculo que diminuí a cara empurrada pela sede avança de forma incerta. Um perfil frágil desenha-se a si próprio sem claridade. A cara subconsciente de uma mulher, levemente arredondada. Como se tivesse surgido de si própria. A altura inominável, recorrente nos nossos horizontes de cada dia. Esse crescimento vizinho onde há um depósito de lixo, armazéns ou antenas de televisão. Ou simplesmente esse silêncio nu da pedra que vêm, o fim do mundo e a erva daninha.

3/

Tenho as minhas coisas empacotadas. Coisas. Só agora reparei em como fui absorvido pelo dia. As coisas estão ao meu lado, mas eu não serei capaz de descrevê-las exaustivamente. Mergulho de cabeça numa corrente brilhante. Vejo um tremer distinto aos pés da inominável altura. De repente ela atravessa-me como uma resposta desarticulada. O que realmente pode ser uma parte indissociável da original de uma pergunta auto-resposta.


4/ As Coisas estão empacotadas. Ainda tenho de atirar alguns grãos aos papagaios. Ciao. Vou deixar uma mensagem na porta. Aí ela vai brilhar através do buraco da fechadura. E dá a impressão que eu não emerjo de dentro, antes pelo contrário, eu queria entrar.
E actualmente é esse o caso. Tão perto da verdade, devia passar à frente, nas faixas de Fermi, Mallory, caracóis cortados e caravanas sem nome. Mas não vamos atirar areia aos nossos próprios olhos. Vou trabalhar. Sou um viajante, sou um cartógrafo, sou um caminhante de estrada. Sou um detentor. Eu sou.
O que eu vou relatar. Eu sou tu. E devíamo-nos conhecer.


5/ Tudo está na concha. Cruzamentos, estradas, auto-estradas, ladrilhos e pavimentos. Eles começam em todo o lado. É onde tu estás agora. E em todo o lado há um caminho que parte. Quando o estás a pisar, ou quando estás a fazer o caminho trilhado. E sempre ele leva-te a através de ti.

É bom parar à beira de uma árvore sem frutos. Dar uma volta pela relva fresca. Beber água de uma garrafa do deserto e observar sem som as caras dos companheiros da jornada.
Oxerpa por exemplo. Nos chamamo-lo assim por causa da sua forma de andar. Mesmo lá em baixo nas planícies argilosas ele caminha sempre com uma ligeira inclinação para a frente, como se estivesse a escalar uma montanha. Aqui na planície, ele revela-nos a cada passo uma parte de uma verdade íngreme. Ele conhece-a mas não está a pensar nela . Ele é taciturno. Sempre avança em frente.
Ao lado da árvore sem frutos eu calculo a posição geográfica. Nós estamos precisamente a 730 graus da expansão para sul da concha.

Ivan Strpka

Tradução de Nuno Brito - Literature Across Frontiers. Vila do Conde 2010

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