domingo, 4 de setembro de 2011

Maria Képhri

Só o supremo tende a decrescer,
o hábito comum pertence à sobrevivência
os hábitos da metafísica são hábitos de comer à mesa,
e há um que pondera de maneira menor a este poder,
o que não quer dizer que decresça
mas sim que se torna desconsiderado.
O hábito de comer à mesa sempre foi um acto da metafísica,
mas haja pensamento inteligente, ele pertence aos jovens.
Num imaginário supremo também se diz paralela a inteligência
e então que a inteligência também se torna metafísica,
de acordo com o ser universal.
E há um que pondera viver como o ser comum...
Somos todos jovens floridos, vamos cantar as janeiras,
o hábito que nos veste também ignora o supremo e o poder,
somos jovens de modos, de modas, maneiras
uma maneira de entender a metafísica...
Uma maneira de entender: é que tudo pertence ao todo,
uma maneira de entender é que a morte é resolúvel
e que então a morte é um hábito também
uma pequena bibliografia sobre dizer-se da morte uma jarra flores em cima da mesa
uma pequena bibliografia sobre uma evidência
E então estudamos: acto comum, os hábitos filosóficos
aquilo que a metafísica ensinar na educação
e aquilo que vamos perceber do objecto que nos diz respeito.
Vamos perceber de qualquer modo, floridos no dia dos namorados,
de máximas filosóficas, e sem a nossa memória.
Ele pondera se o dia será muito curto e tem que retocar um objecto decorativo,
retocar a metafísica: o almoço, o jantar,
retocar qualquer hábito que pertença à sua mesa.
Só o supremo tende a decrescer, mas só a metafísica consegue ser menor.
E o supremo decresce? Houve um que tocou num balão,
ele quase caía a decrescer. A noção de todo o espaço não é do supremo,
que dizem deste meu à vontade? Olhamos e temos olhos para
retocar o espaço em volta. Tocamos e temos a nossa própria evidência.
É esta a nossa metafísica.
E o que é esta impossibilidade de saber?
O ser eterno às vezes pergunta coisas estúpidas.
O ser eterno pergunta se os mares inundam as casas dos possíveis mortos.
E qual é esta certeza, esta impossibilidade de saber?
Esta certeza de perguntar?

No ramo das perguntas a lógica diz que vai de A para B, de A para C, e de B para C.
A impossibilidade de saber é categórica. Não existe impossibilidade de saber.
A impossibilidade de saber é categórica. Não existe impossibilidade de saber.
E o que pondera, e o que é jovem, e o que levita
toda esta linha de vida na história distribuída.
os homens que são pobres fizeram-se Deus nas boîtes
restou um fumo primaveril que lhes tornitruava a catequese da miséria
esses homens vivem o inexplorável e ainda pecam
nos becos sem saída e nas mãos húmidas de tigreza
procuro um fio condutor de toda a minha pobreza
encontro dimensões de conhecimento muito apoupadas nos pequenos
povoamentos dos territórios hinos
são pequenas aldeias com a dimensão provocatória do seu modo de saber
semelhante à sua mediana
são pequenos dados sem razão aparente para este condenamento
se quis dinheiro não o tive, fazê-lo com sentimento
arriscar a sensação celeste de ultrapassar todo o desvio social
para cair de cabeça no reino de Jerusalém,
é quase perder a vista
as moedas que tenho guardo-as para nicotina, não como pão do dia
nem tenho almoços grátis
perder-se-ia a vista no seio de metalizados com a correria
da dependência duma África
os homens que são pobres fazem-se Deus pelos caminhos
os caminhos desabrigam-se, formam corações sepultados
e pedras de areia morta. Não sou pobre
sou um coração de areia morta a rezar pelos peixes sem olhar.
Se fosse pobre não teria sabido que
a areia me sobe à boca como se já estivesse na foz
e que morro todo o sentimento quase a perder de vista.
os homens que são pobres fizeram-se deuses a perder de vista
apararam a areia dos caminhos e contiveram
uma tensão de conhecimento sem préstimos, que ia
caindo de cabeça quase quase sem préstimo nenhum
e a cabeça atirou-se
a cabeça por fim bateu nas paredes de areia morta
e morreu também como a areia farta de dimensões de conhecimento
que não lhe serviu de nada.
as mãos estão frias e deixaram de ser
acabei de me enformar
sou uma espécie última do descalabro
não me deito mais pra baixo porque não posso
acabou a minha depilação de energia no último átomo
o ego está meio caído
assim ao centro é como se fosse uma convergência de
carros em movimento perpétuo e arrombamentos
os diabos terrenos são terríveis terríficos
as crianças ainda brincam por desporto às palavras últimas
enquanto os jovens pedem sentidos de senso comum
estou deitada. em equilíbrio
o planeta dos seres-máquina é mais pacifista que o meu
mesmo a casa, o quarto
é mais pacificista o quarto que a sala e a sala está coesa em terrificismo
deito-me. em equilíbrio
a deita é fundamental para a veracidade da espécie contígua
o adormecimento, a mentira, a piedade.
deixei de ter mãos, não as sinto
são mãos de leis e de objectivas mentais que fotografam
a vida pessoal num pano quente
escolho cada dia um tema primordial
o ego é uma hierarquia, a democracia pede muito
que os senhores se fotografem nus no passeio familiar
tenho a vida pessoal metida num pano encharcado quente
vou ali às compras do poema quase vejo o Tom Waits homenageado
por cumplicidade de ataque iraquiano
o poema manifesta a asma que nós temos no ponto da não-sei-quê da fusão
que é uma fusão qualquer sobrenatural
estar vazio é assim - estar cheio de fusão
o poema quer sempre manifestar esse pequeno ponto que nos põe nus
(quer-me dizer que tanta fusão gera um sentido proibido?)
os poemas têm dessa e da do cérebro. O cérebro acaba
sempre por explodir para o centrifugamento do poema
(temos ciência a mais, não me diga?)
não consigo deixar de pensar que as mãos estão frias
ponho-me a falar do deserto
deixei as mãos num altar perto do pico do evereste ou isso
esqueci-me lá da tragédia do pico
o alpinista contou a odisseia e rememorei que o seu pai
era amigo dum amigo duma criancice com os nenucos
os nenucos tiveram uma tragédia na Odisseia de Homero

que era similar à ideia universal dos miúdos
conta-se que a Odisseia era um livro da historicidade da vida da grécia antiga
os miúdos já compõem histórias dessas e depois deitam-se
os diabos terrenos engomam para fora
ponho a falar-se o deserto em ruínas
a poesia é algo sobrenatural que se conta assim aos outros
mas só em sítios escondidos
não me admira que apareça alguém duma caverna e reinvente todo o seu sentido
iriam muito bem reclamar essa pouca vergonha de sentido proibido
não me canso de pensar no ego
se arranjar um sentido causa-efeito ninguém compreenderá
se a minha ciência ficar complexificada rebento o cérebro para gigantismo
de pré-eternidade do poema. como seria sofrer dessa
doença? uma complexidade que se alongaria a sentidos supra desenvolvidos
todos em comunhão com o furo no cérebro pequeno
que é o de um ser comum
os carros já convergiriam com mais velocidade para arrombar
de vez com o ego no poema – e que ciência última?
se fosse ali comprar um poema vendia imediamente por lisonja de inaptidão
não se vendem ou se compram poemas, é-se imediamente um inepto
ninguém compreenderia o meu sentido causa-efeito
os temas complexos são com falta de desenvolvimento
não sei como é que o poeta tem medida para tanto e ainda
vive acorrentado ao conhecimento dos aspiradores
ou melhor dizendo, a poesia não lhe veste a capa,
não basta construir um muro já se tem outro, o tema
não basta para desmembrar a pele da memória
e a vida não consiste em que a casa nos caia em cima. sou deste
pedaço de terra que come todos os dias
ontem estive perante uma explosão, há muito tempo
há muito tempo
que a minha vida é uma explosão
não sou telepata com os que rodeiam, não tive
possibilidade
que assistissem a esta autêntica explosão de conhecimento
que se tem vindo a dar. O poema acabaria assim –
um pedaço de terra, de todos os dias, tão necessariamente
quanto o mais que falta
o açúcar dos pulsos eclipsou-se
o tão bem visto néctar
de uma natureza furtável, visivelmente
«a criança em chamas»!
eu não
ao ver a criança as polpas dos dedos carcomem-se-me
o luto não me fica bem mas também
não
a diáspora, a fragilidade cristalidade
do indómito pavor
ao grito lancinantes dos templos sob a insurgência
dos vultos
das mãos aluviando um risco em vão
qualquer coisa que se toque para enfim
temermos a morada
a origem do relógio das alucinações
em torno de alguma ressonância dialéctica
um pretexto de
estar enfim dentro de algo que se afoga
em contracções épicas
máscara fronte negro
um bosque um ponto onde não
podemos desvendar
o pequeno enigma
às vezes de um céu
de uma eternidade
do piano surdo sob a luz dos movimentos

é impossível toldar um bosque
como uma cara sedada absurda na milesiminidade
do habitat
no fundo somos aquele cocker junto à palmeira
o rochedo-instante
a lorpa-vácuo
a consagração do ar em múltiplo com a ilusão
da instância
o ponto-pó
o odor-memória aquela sentença
querida-romântica que não passa disso: e do progresso
e de não sairmos do mesmo ponto que é o universo
ou o que quer que seja desde que haja
uma vontade irreal
e somos todos imensos
alguém diria
o problema é que depois as contas de nós para nós:
isto fará sentido?
alguma coisa inútil que enfim me rejuvenesça me domine me revolva me
ALICIE?
alguma casa à espera de outra casa
algum mar parado no irrespiro
de uma advertência ilha alba consonância
poupados ao egoísmo
poupados ao consumismo
poupados ao radicalismo
poupados ao grito silêncio «Indeterminado»
e a música, que surge atenta nos poros
é, será apenas
uma nuvem que vagueia, uma marca de pulso um horror
a rostos esses sós
uma longa vida seria um pássaro
as portadas abertas para partilhar as árvores
ao amigo que voava no avião de madeira
esse amigo viria tingir de verde a toalha do lugar
arrefeceria o crânio e deitava-se ao comprido
o pássaro voava também nas suas asas
e o amigo agarrava-o com força para que morresse
(não é uma situação de morte? um pássaro)
uma longa vida seria um pássaro apenas teu ou meu
onde depuséssemos o peito desse pássaro sob a liberdade das asas
e o pássaro vivia em pleno voo na nossa miragem
apenas nossa essa miragem
e quando tivéssemos a certeza do pássaro?
teríamos a certeza que o espaço-tempo nos pertenceria
e toda a vida para trás, e todo espaço estudado, e todos os livros lidos
assim que chegasse esse pássaro
(se é um pássaro que te faz confusão vai a correr atrás do pássaro!
se é um pássaro que está presente confia, olha
estremece com o pássaro, faz tudo o que quiseres do pássaro...)
o pássaro pendia dum alto esguio ramo de árvore
e, seráfico, arrastava a luminosidade dos raios solares consigo
nessa longa vida o pássaro continha o milagre de existir
coexistir apenas contigo ou comigo, e coexistia cheio de luz
por todos os lados.
se eu, num quadro, quisesse retratar o que isto significa
pousava o pássaro novamente sob as asas e fixava o pássaro a essa coexistência.
o amigo viria no seu avião de madeira visitar-me lentamente
(e o pássaro? dizia, viste o teu pássaro naquilo
que me queres fazer esquecer?)
o amigo iria povoar tudo de pássaros de todas as espécies
e iria encontrar toda a ciência das aves,
mais tarde dir-se-ia do amigo
o que uma longa vida poderia contar desta nossa coexistência
e aquilo que estudámos, como nos divertimos, e como
esse pássaro era uma milagrosa miragem apenas nossa.
e esse pássaro naquele momento de leveza e incidência
e esse pássaro que ficou pendendo num fino ramo
era um pássaro que significava apenas a liberdade de um instante
e, que nesse instante, eu e o amigo fomos felizes.

depois seguem as pessoas
depois é que a senhora se esvai
em algodão e aquecida para
formar buracos nestas ruas
depois segue o seu sonho
e fixo onde segue mais gente quer vendê-la
o sonho é um teclado opaco
é um objecto que nos falta
e que dizemos por escrito
o sonho tira objectos dos sítios
não há mais sonho por agora
não há proprietários nem quem sonhe
sonho como uma senhora
vou à procura de cada cova
para na cuja me sobrar o espaço de tempo onde o pensamento pára
e vou também vendida
os objectos que lhes faltam
falta-lhes até o sonho
e na escrita falta o sonho
e nas ruas são vendidas
depois segue mais gente
e segue toda a escrita também
na escrita este sonho acaba
neste poema acaba a minha recordação
se quisesse criar algo novo por onde teria o sonho, as ruas?
está tudo para venda, nem conseguimos o resto da riqueza
e então onde ficava o sonho?
nightmare housecleaner
turnos
e então onde ficava a escrita?
ficaria a escrita num momento
e esse imprescindível
os poetas não sabem criar intemporalidade, os poetas já não têm sonhos
os poetas vendem-se nas ruas
e a verdade tem um fim em toda a escrita
acabem com a verdade! ou então: acabem com a autoria!
não faz sentido o sonho e os objectos
não faz sentido nenhum a inovação
depois seguem e seguem
sem entendimento algum
e não têm qualquer sonho ou moral
para os próximos mestres
a senhora anda aquecida
dou-lhe algodão para que se vista
têm teoremas de objectos
têm teoremas de poemas
os poetas compram-nas e vendem
a escrita é uma saudade continuada
agora quero a minha recordação
quero um momento do futuro
uma preservação daquilo que é sagrado
e juntar-me às ruas todas
vindo dos cânticos do futuro
os sonhos inquebrantam-se, enquanto
vou sonhando em silêncio, com marcas de água
diz-se do paraíso que é um sítio de mordaças
onde só o silêncio atingiu o emprego
antes de lá chegarmos pensamos em jarras de flores
céu nublado, uma nuvem,
e só depois chegamos ao precipício precipício
da nuvem, da flor.
às vezes uma criança traveste-se de nuvem
às vezes temos a sensação de estarmos perto
do precipí
do precipício, a criança nuvem é o nosso sonho
não nos lembramos mais de morrer depois do paraíso.
tenho um sonho ou outro, mas um sonho no meio
da terra, não me recordo do suicídio.
águas e sal à espera de cair
vão caíndo gotas e sal
das águas e sal que não constituímos
das marés baixas sem rodarmos o mundo.
penso como um poeta tem tudo:
nasce, vive, pertence ao paraíso
se é que tem, de que poesia serão feitos
os substantivos, os adjectivos sem consagrarem
um enorme espaço, um objecto distante? uma palpabilidade
cujo o poema não consegue acarretar, para defini-la
com estrofes e versos que saem da riqueza da vida.


será que o poeta pode ter tudo? escreve prolongando
nasce, vive, pertence ao paraíso
se é que tem, de que poesia serão feitos
os substantivos, os adjectivos sem consagrarem
um enorme espaço, um objecto distante? uma palpabilidade
cujo o poema não consegue acarretar, para defini-la
com estrofes e versos que saem da riqueza da vida.
será que o poeta pode ter tudo? escreve prolongando
uma nota à vida, não encontra como Dante
o paraíso nos versos, escreve ao lado da máquina fotográfica.
sonhei conseguir pertencer a um mundo diferente
um mundo onde o meu eu se transformasse em algo inédito
que era eu não sendo eu, o sonho cultivado até à milésima parte da terra.
seriam muitos sonhos, contar-se-iam um a um
pelo glóbulos de luz entre as paredes, escavar-se-ia
uma terra funda até encontrar-se um novo eu,
e depois chegava o paraíso. o paraíso seria a vida descontruída,
descontruir, ponto a ponto, o já construído
depois de nada termos construído, ainda assim.
as tuas pernas deflagram o percurso, não consegues
chegar até ao precipício, se a terra afundar até
chegares até ti, refaz-se o sonho perdido
pelo glóbulos de luz entre as paredes, escavar-se-ia
uma terra funda até encontrar-se um novo eu,
e depois chegava o paraíso. o paraíso seria a vida descontruída,
descontruir, ponto a ponto, o já construído
depois de nada termos construído, ainda assim.
as tuas pernas deflagram o percurso, não consegues
chegar até ao precipício, se a terra afundar até
chegares até ti, refaz-se o sonho perdido
para além do paraíso.
imagino morrer no próprio paraíso
sem ter nunca magoado alguém. toda a gente
vive de pesos, só o sonho puro.
como será
morrer num paraíso paraíso?
nuvem, flor, e morrer-se da maravilha.


Maria Képhri: in "Cràse" número 0. 2009.

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