terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Augusto d'Halmar



"Habrá que partir, para no llegar"

Augusto d'Halmar (1882-1950)



 Prémio Nobel da Literatura, 1942 - Ano da fundação do Prémio.

Pequenos animais sem expressão


Vem deste livro, o título deste blogue

Beatriz Hierro Lopes


Geração do Silêncio

Somos sombras fugazes projectadas pela luz constante que ilumina a cidade. Seja nas ruas que a dividem e reencontram nas suas múltiplas encruzilhadas, onde desaguam multidões à velocidade do som dos seus passos, seja na claridade promíscua dos focos de diferentes cores numa pista de dança, fermentada ao sabor do álcool e das drogas que nos despertam os sentidos e adormecem o espírito; da televisão ininterruptamente ligada na inconstância do zapping, através da qual passam encadeamentos de imagens fragmentadas de filmes, documentários e séries cujo fim nunca é visto, na rapidez do clique para o próximo canal; do telemóvel sempre a vibrar com mensagens codificadas numa nova linguagem veloz que torna os segundos em minutos impossíveis, na impaciência dos limites de comunicação.

Nós somos o eco da dinâmica imparável da pós-modernidade! Para nós foi reinventando o conceito de tempo, e como saturninos deglutimos o presente na velocidade com que os nossos maxilares o absorvem, tornando-o numa breve memória de um passado recente. Vivemos o ritmo sonoro do mundo, na certeza que somos demasiado pequenos para o apreendermos na sede de o conhecer ou na apatia com que lhe viramos costas. Somos a geração da revolta sem revolução, herdeiros dos sonhos naufragados dos nossos antepassados próximos. Descendentes de idealistas estamos despidos de ideologias originais pela forma enciclopédica com que conhecemos o que pensaram e defenderam os que viveram antes de nós. Somos os mais frios juízes da História feita na nossa ausência.

Definidos pelas conquistas tecnológicas com as quais crescemos somo rotulados como “Geração Y”, “Geração Net” e “Geração Boomerang”. Os que antes de nós vieram e depois de nós se erguem, questionam o nosso valor. Quanto vales? Perguntam-nos, sem que a sua interrogação tenha a leveza de uma curiosidade ou a rispidez de um interrogatório. À sua semelhança pergunto-te qual o peso do teu valor singular, respondes-me: I have too much blood in my alcool. Sei que o corre hoje nas nossas veias é veneno, premiado pelas mais diversas marcas, engarrafado em vidros fumados de diferentes cores.

Qual é a tua cor? É o verde que te oferece viagens quase sonhadoras enquanto os teus olhos permanecem abertos? Ou o transparente lúcido da água que te ferve as vísceras e te engole o espírito? A dor absoluta da Vodka ou o devaneio do Absinto? Preferirás a mistura em shots sempre cheios como o poço estreito onde te afundas ou a elegância do copo alto borbulhante de Champanhe? Fala-me das tuas preferências, entusiasma-te com as tuas marcas e saberei ver em ti, o espectáculo da degradação dos nossos ossos. Farás o apelo mudo à abstinência. Mas nós somos os sequiosos. Os esfomeados, que devoram o Mundo em dentadas sôfregas de desejo. Aquele que o sexo não sabe silenciar.

Somos a boca sempre aberta na dilaceração comestível das palavras, o crânio recheado de rios que premeiam os sonhos com o cheiro a morte. Os ouvidos que reconhecem em todos os Requiem’s a fragilidade com que se quebram os espíritos. Errantes que vagueiam pelas montanhas despidas de roupas, sem nunca encontrar beleza igual a do olhar da mulher que naquele momento pára, na sacralidade do tempo que se esgota entre os seus dedos. A esfinge do eterno ponto entre o Passado e Futuro. O Presente encerrado na tosca configuração da nossa carne. Numa Humanidade sem tempo, sem memórias, sem antes nem depois, nós somos os seus mais adoráveis bastardos.

Todos os discursos, teorias e conversas sobre a morte conhecem em nós, o som oco do punho contra o muro. Ninguém pode ensinar um morto a temer a morte. Não enterramos apenas os nossos antepassados, não sepultamos como todas as gerações os nossos sonhos no solo propicio as colheitas dos que virão depois de nós, nem choramos o fim dos que por momentos amamos.

Procurem o nosso espírito debaixo das pedras - é esse o seu berço.Comprimidos entre a terra lamacenta e o frio do granito. Nascemos mortos por isso vivemos mais do que qualquer outro vivo. Não há amor possível à vida. Sabe-lo. Violamo-la como exímios soldados perdidos no enredo de uma guerra que não é a sua. Não honraremos os princípios do luto monocórdico, não consolaremos carpideiras de ocasião, não escreveremos belas peças sobre o mistério do corpo em putrefacção. Seremos não a Ira do Homem sobre Deus, mas a revolta dos Deuses sobre os Homens. Porque a Perfeição está nos nossos olhos e os nossos membros desgastados movem-se na dança imparável do Universo, sem medo, sem tonturas, sem amarras. Somos de peito nu, o Enforcado e a nossa corda é a trança com que interligamos o que fomos e seremos, no altar do que somos.

Chamam-nos perdidos, em analogia as sombras. Sentenciam-nos a juventude e amaldiçoam-nos a velhice. Não sabem eles que a Sombra que se ergue atrás de nós iluminada pelas luzes eléctricas de todas as cidades, é da altura da escadaria que conduz ao Inferno das Mil Luzes, que como bons proscritos descemos todas as noites, para alimentar o nosso espírito da sede de fogo. Vejam-nos altos. Soberbos. Tiranos de narizes escondidos nas páginas de um Moleskine. A Genialidade não se banha em nós, não resiste ao nosso olhar. Génios existiram e génios morreram. Nós somos apenas os seus coveiros e os criminosos que os desterram, arquivistas dos seus traços, guardiões das suas pequenas revelações. O único caminho possível é o das pedras, das tíbias e caveiras, é sobre ele que nos elevamos e é nele que nos assassinamos. Nada de suicídio: Nostálgico feminino. O adeus ao mundo que nos vira as costas. Só o assassinato é digno. Somos a vitima agarrada à ilusão da vida e o maldito que a degola na sabedoria da morte.

No fim, apenas o esquecimento nos aguarda. Por isso bebemos até que não reste uma única gota no copo de plástico do bar a que vamos, fumamos até que os nossos pulmões não consigam consumir mais oxigénio e drogamo-nos até que as sensações nos corrompam despertando selvajaria das emoções. E todos os nossos actos parecem gritar: Je me crois en enfer, donc j’y suis! Nós que vivemos todas as noites tal como a Nuit de L’Enfer, de Jean-Arthur Rimbaud. Porque sabemos que apenas vivendo o inferno podemos atingir o céu, só mergulhando nas chamas que nos dilaceram a carne poderemos ver a anatomia dos nossos ossos e redescobrir na configuração que se prende além dele, o vazio que narra a dissolução do eu.

Ambicionamos apenas o inalcançável - Le silence est impossible. C’est pourquoi nous le désirons -, nunca a afirmação de Maurice Blanchot definiu com tanta precisão uma geração como a nossa. Nós, a Geração do Silêncio. Atulhados em roupas de marcas conhecidas, sempre a par das últimas novidades do mundo da música. Excitados pela forma como os nomes de autores nos percorrem a boca, edificamos analogias em que as nossas experiências pessoais recriam as alucinações das suas personagens.

Trazemos para a realidade a ficção, seja na maneira como a nossa identidade virtual se dilui na veracidade com que nos mascaramos quotidianamente ou na heresia com que transgredimos a moralidade socialmente aceite. Dormentes vivemos a superficialidade, sem que o excesso nos permita esquecer: ¿Qué es la vida? Una ilusión, una sombra, una ficción, y el mayor bien es pequeño: que toda la vida es sueño y los sueños, sueños son, no poema de Calderón de la Barca, que renasce das profundezas de um século XVII hispânico. A eutopia da nossa geração é a possibilidade de existência no não-tempo, o imortal aqui e agora, o ponto fixo da encruzilhada onde o passado, presente e futuro se interpenetram no silêncio que abarca tudo. Possuídos e possuidores de uma plenitude inalcançável.

Perguntam-nos, pois, quanto valemos.

O nosso peso é o das estrelas que nos iluminam e recordam que o Anjo não é apenas Terrível, o Anjo é a Blasfémia do Mundo Moderno e a Libertação do Silêncio. Existimos e existimos como nenhuma outra geração existiu antes de nós. Somos únicos porque somos os receptáculos de tudo o que foi novo e será novo, na musicalidade dos anos que se desdenharam depois da nossa morte.

Somos a rapariga órfã e violada pelo seu tio, a deglutir em tragos largos a garrafa de Whisky roubada num supermercado, a dançar sem música sobre a campa 902 do Cemitério do Prado do Repouso aos gritos: Só se é imortal enquanto se vive. Somos a menina de 16 anos a mergulhar a mão na água benta da Sé Catedral depois de experimentar LSD - Vês? Vês, Beatriz, os demónios que vivem na água? Vamos morrer e o meu corpo vai ser velado na Igreja da minha terra. Somos o poeta bêbado e cocainómano, na fragmentação do seu espírito - Hoje sei que as minhas asas de Anjo não servem para voar mas para escavar a terra e mergulhar o meu corpo nas chamas do inferno. O Anjo é diabólico só assim pode ser celestial. Somos o advogado com a garrafa de Porto à frente de uma Macieira, de rosto enegrecido pelas fagulhas da fogueira, a saborear o vento: Only throught time time is conquered, de T.S. Eliot.

Quanto Vales? - Pergunto à tua sombra. Em silêncio respondes-me: Menos que nada e mais que tudo.


                                                           Beatriz Hierro Lopes, Criatura nº 1.


Duchamp was here


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Saldos no Vietname: Alexandre O´Neill


Saldos No Vietname

Bombas de esferas:
cachos de bombas nascem de uma só bomba-mãe.
Cada bomba-filha ejecta, à altura do homem,
300 esferas que vão penetrar na carne aos ziguezagues.

Parente deste sanguinário jogo de berlinde
é o jogo das setas: um polegar de tamanho,
aletas que lhes permitem
entrar em parafuso carne dentro,
pontas de arpão,
que torna a sua extracção muito difícil.

(Agora as setas, quando já no corpo
- é um melhoramento! - fragmentam-se.)

Também há projécteis de plástico
não detectáveis pelos raios X;
e a bomba dita de nuvem explosiva.

Quando entra em cena o seu papel é este:
introduzir, primeiro, por escâncaras ou frinchas,
no teatro onde está a actuar,
uma expansiva nuvem de etileno.

Só depois explode: então, o fogo
pega-se ao etileno e ... cai o pano!

E mais uma invenção: as minas-aranhiços,
que desenrolam patas de 6 metros
quando tocam no chão.

Ai de quem tropeçar numa das patas:
nem a mosca da alma terá tempo
de se evolar!

A TV veio também colaborar
com «directos» bem sofisticados:
realizador-bombista, o pessoal-piloto
a um só tempo fabrica e realiza a própria acção
e faz-vê, em grande plano, o seu desfecho.

Outros sinetes deixou o americano
no texto Vietname.
Um dos mais velhos: a incandescente lepra
à procura de pessoa que se chame napalm;
um dos mais novos: a bomba
devoradora de todo o oxigénio
250 metros em derredor
do ponto onde cair.

E onde o americano espera nunca estar.

Alexandre O'Neill, 1975.





The 5 6 7 8's - I'm Blue!


Antologia de Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa



Luiza Neto Jorge


A CASA DO MUNDO

Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos  sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.

Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirenéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.

Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objectos de família , atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.

Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago,
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.

É a casa do mundo:

desaparece em seguida.


Luiza Neto Jorge - 19 Recantos e outros Poemas. 7 Letras.




Rui Pires Cabral



«Do coração da noite vinham apelos e silêncios»1
Para o João Menau

As cidades doem, estão dentro de nós
mantidas por laços de fumo e desejo,
têm muros úteis e portas escondidas
que dão para a noite, como certos livros,
e há amores que vivem a horas tardias

e outros que se cortam no fio da trama,
queimam paus de incenso para abrir
caminhos, remover obstáculos, há curvas
e arcos, ecos desolados, quartos de ninguém.
As cidades cansam, estão nos nossos

dias, têm mil janelas de azul virtual
que nunca sossegam e nunca terminam
e há corpos que ensinam a temer a morte,
sombras que circulam nas redes do escuro
e homens que ferem para não chorar.

1Albert Camus, A Morte Feliz [tradução de José Carlos González], Livros do Brasil, Lisboa, s/d, p. 102.
Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira, Lisboa: Averno 2009

Satoshi Kon



A Realidade provém da Ficção

Satoshi Kon - Paprika




segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Daniel Jonas



MODORRA

Despe-te.

Já nada resta em mim que possas ocupar.
O fumo envolve-te na sua imprecisão.
Como, aliás, todas as coisas.
Tens-me a mim de pescoço decepado.

Leva-me.

não peso mais que a vida.
Respiro cidades de pólvora atrás do teu ouvido.
Sou o teu servo fiel. Chamo-te amo.

Das carúnculas vão-me servir aves, sangue.
Feneço. Sou um espírito perfeitamente incompatível
comigo mesmo. Serei coxo se fores coxo.
Serei implacavelmente belo se o fores também.

Durmo de joelhos. Deus às vezes esquece-se
da sua condição (É da idade). Planeio um
programa de dissolução sem retorno possível.
Sou um barco e gosto.

Das arquibancadas de mim mesmo
aplaude-se a minha capacidade de acreditar.
Sou um produto da revolução industrial, isso é
indiscutível. Caminho para um fim tóxico, alarmante.

Gostaria de filmar o teu pouco à-vontade.
A ti que perdeste o estilo.
Gostaria de filmar a tua queda
com calças de licra ou com óculos de sol.
Gostaria de te olhar nos olhos e dizer:
Estou espantado com a tua condição humana,
Joana ou Gonçalo.

Silencia-me .

As minhas ideias não são minhas. Na verdade,
quem terá ideias próprias? Uma ideia
é apenas um constrangimento, nada mais.
Enterra o teu machado de guerra nas minhas
costas e fuma depois o teu cachimbo da paz.

Será que tudo o que digo é poesia?
Quais serão os limites para a minha arte?
Dizer qualidade de vida será impossível
face a essência do éter?



                                                     Serei um marginal?

Tenho como maior ambição ser um poeta menor.
Conhecido por este ou aquele dito jocoso, pouco mais.
Quero levar versos às tuas presilhas e passar
notavelmente despercebido.
Quero beber cerveja pela tua boca. É tudo meu amor.


Daniel Jonas - O corpo está com o rei.


Fiama Hasse Pais de Brandão


Ciência, violência

Eu já sentira os objectos tal como aleatoriamente se me
apresentaram,
significando. Uma foice suspensa, gaiola vaga com folhas,
para que a minha biografia
no tempo subsequente da leitura pudesse diferir
da obsessão da letra do leitor. Chamavam desvio literário a
uma leitura obsessiva. Amava as compilações, as unhas
resistentes que haviam traçado
siglas. O que o cicerone edita e crê era, sendo verídico,
a mais álacre ficção. Os túmulos não se movem não só
porque mover não é específico
da pedra, mas porque chegáramos nas viagens, ao
conhecimento e ao desconhecimento.
Reconhecêramos no alheio a parte longínqua do corpo. Em
tantas línguas,
há tanto tempo me vinham descrevendo os amantes, que
a sua imagem
como toda a ciência neste século é agora altamente
especializada.
E no futuro tudo ainda será mais semelhante a tudo,porque

teremos comutado com mais intensidade
a nossa biografia. Depois, as crianças tocaram nas peças
expostas enquanto o cicerone me expulsava ignorando
que eu estava a dizer e a desdizer, na descrição, como era
este local para os visitantes.


Fiama Hasse Pais de Brandão






A portuguesa





- Se Deus pôde fazer-se homem, também poderia tornar-se gato - disse a portuguesa.

Robert Musil - A Portuguesa, in "Três Mulheres".


Safo



Parece-me igual aos deuses
ser aquele homem que, à sua frente sentado,
de perto, doces palavras, inclinando o rosto,
escuta,
e quando te ris, provocando o desejo; isso, eu juro,
me faz com pavor bater o coração no peito;
eu te vejo um instante apenas e as palavras
todas me abandonam;
a língua se parte; debaixo da minha pele,
no mesmo instante, corre um fogo sutil;
meus olhos me vêem; zumbem
meus ouvidos
um frio suor me recobre, um frêmito me apodera
do corpo todo, mais verde que
as ervas
eu fico
e que já estou morta
parece
Mas  


Safo 


Roberto Bolaño


Um dia Rosa Méndez contou a Rosa Amalfitano o que se sentia ao fazer amor com um polícia.
- É o máximo - disse-lhe.
-  Porquê? Qual é a diferença? - quis saber a amiga.
- Olha, não sei explicar-te muito bem, 'miga - disse Rosa Méndez - mas é como foder com um homem que não é realmente um homem. É como voltar a ser menina, percebes? è como se fosse fodida por uma rocha. Uma montanha. Tu sabes que vais estar ali, ajoelhada, até que a montanha diga já está. E que vais ficar cheia.
- Cheia de quê? - Perguntou-lhe Rosa Amalfitano - cheia de sémen?
- Não 'miga, não sejas grosseira, cheia de outra coisa, é como se uma montanha te fodesse, mas como se te fodesse dentro de uma gruta, entendes-me?
- Dentro de uma caverna? - perguntou-lhe Rosa Amalfitano.
-Isso mesmo - respondeu Rosa Méndez.
- Ou seja, é como se uma montanha te fornicasse dentro de uma caverna ou gruta que fica na própria montanha - disse Rosa Amalfitano.
- Exactamente isso - concordou Rosa Méndez.
E depois acrescentou:
- Adoro a palavra fornicar , vocês espanhóis falam de uma maneira tão bonita.
- Tu és mesmo estranha - disse-lhe Rosa Amalfitano.
- Desde pequenita - respondeu Rosa Méndez.
E continuou:
- Queres que te conte outra coisa?
- Conta - disse Rosa amalfitano. 
- Eu forniquei com traficantes de droga. Juro-te. Queres saber o que se sente? Olha, sente-se como se fosse o ar a foder-te. Nem mais nem menos, o simples ar.
- Ou seja, fornicar com um polícia é como se uma montanha te fodesse e foder com um traficante é como se fosse o ar a fornicar-te?
- Sim - disse Rosa Méndez - mas não o ar que respiramos ou o que sentimos quando vamos pela rua, mas sim o ar do deserto, um temporal de ar, que não tem o mesmo sabor que o ar daqui, nem sequer cheira a natureza, a campo, mas cheira ao que cheira, um odor próprio por não se poder explicar, é simplesmente ar, ar puro, tanto ar que às vezes custa a respirar e julgas que vais morrer asfixiada.
- Ou seja - concluiu Rosa Amalfitano - se um polícia fornicar contigo é como se uma montanha te fornicasse dentro da própria montanha, e se um traficante de droga fornicar contigo é como o ar no deserto te fornicasse.
- Ai 'miga se um traficante te foder é sempre uma intempérie.



Roberto Bolaño - 2666, Quetzal.


Alexandre Teixeira Mendes


animal humano

O suicídio e a alma

Dir-se-á que o nosso mundo não é um mundo ilógico, mas também não é um mundo racional. Mas será, de facto assim? Será que a vida é uma armadilha para os lógicos? Desconcertante? Inteligível? Ou, pelo contrário, não será mais matemática e regular, e havemos de concordar, racional? Quase somos levados a concluir que o mundo - interpretado à maneira de G. K. Chesterton  - "é quase razoável, mas não chega a sê-lo perfeitamente" e, que, portanto "a sua exactidão é patente, mas a sua inexactidão se esconde, e o que tem de insólito jaz emboscado" (Os Paradoxos do Cristianismo).

Animal humano

Diremos, à guisa de roteiro, que a realidade é sempre bifronte. Será que a mão direita não pode nunca conhecer a mão esquerda, apenas interpretá-la e traduzi-la? O estranho, sim, é que o animal humano, nunca será demais insistir, patenteia a marca de uma espécie altamente inventiva ou até a mais predatória e destrutiva. Note-se, porém, que a sua capacidade inventiva, potencializou a tecno-ciência; criou as condições de transformação da superfície do planeta e criou o mundo da tecnosfera. Não é ocioso fazer esta constatação. Mas interessa fixar como ponto assente que a tecno-ciência acentuou um problema por resolver: o da fragilidade da natureza humana.





Dacia Maraini


Casa de mulheres

Lulú é siciliano. Tem vinte e oito anos. Um corpo de atleta. Um membro preto comprido e torto. Uma cara que parece uma estátua grega. Os olhos como uma coruja, grandes redondos e amarelos. Os dentes como um cão novinho. Os cabelos encaracolados e rijos. Fala do meu corpo. É o que ele quer. Uma adoração paciente e muda do seu belíssimo corpo de atleta.  És belo, tens um belo peito largo e bem desenvolvido, tens uns belos ombros, tens um belo pescoço ... o seu membro incha e incha ... Parece que vai rebentar. Mas não quer que eu o masturbe. Devo só tocar-lhe com a ponta dos dedos. Mas o meu rabo... Não disseste nada do meu rabo. Desculpa, tens um rabo lindíssimo. Ele vaidoso, volta-se. Um cu louro, pequeno e frágil. É estranho aquele rabo numa pessoa tão grande. Às vezes pede-me que lhe meta um lápis lá dentro. Um de ponta redonda e que tenha borracha no fundo. Nesta altura tem um orgasmo calmo e curto que o abala um momento como se fosse presa das convulsões, depois sossega, dá-lhe sono. Ainda deitado de costas. De olhos fechados, falando devagarinho para ele próprio. às vezes oiço-o a falar da mãe... Depois levanta-se. Dá-me duas notas.

...

Lulú veio hoje todo vestido de azul. Disse que vai casar. Mas quando? Daqui a duas horas. E o que vens cá fazer? Despe-me Manila ... E Manila ali com as mãos de fada a despir o grande guerreiro siciliano, o belo peito, a bela piça, vai-se casar daqui a duas horas com a mulher do coração...
Veio-se antes do costume, mal lhe meti o lápis no cu,  e depois acendeu um cigarro e falou-me da noiva, este marujo... Caso-me para sair de casa, sabes... É uma rapariga loira e bonita, de olhos azuis. Quase não fala, nem sei se me ama, mas tem umas belas mãos e umas mamas! Não gosto de como fode. Parece um bacalhau. Não se mexe, não colabora. Fica ali estendida como um talo de couve e não diz nada, não mexe um dedo... É bonita e está sossegada, não chateia. Disse-me que foi violada pelo pai. É frígida, creio. De noite abraça-me muito e eu caso com ela por causa desses abraços. Gosto muito, mesmo muito de dormir abraçado... Até aos treze anos dormi abraçado à minha avó. Depois ao meu primo, às vezes à minha mãe. Às vezes com o gato. Não consigo dormir sozinho. Vem-me uma tristeza, disse o marujo... Mas continuo a vir Manila, tu sabes de que é que eu gosto! Agora dá-me um beijo de parabéns pelo casamento.
Pagou-me o dobro do costume. 

Dacia Maraini - Casa de Mulheres.



Julio Cortázar

LO QUE ME GUSTA DE TU CUERPO…

Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo.
Lo que me gusta de tu sexo es la boca.
Lo que me gusta de tu boca es la lengua.
Lo que me gusta de tu lengua es la palabra.



Julio Cortázar - Papeles Inesperados, Alfaguara, 2009.

Roberto Bolaño


A sua mãe era zarolha. Tinha o cabelo muito louro e era zarolha. O olho bom era celeste e calmo, como se ela não fosse muito inteligente, mas em compensação boa, de sobra. O seu pai era coxo. Tinha perdido a perna na guerra e passar um mês num hospital militar perto de Düren, pensando que daquela não saía e a ver como os feridos que se podiam mexer (ele não!) roubavam os cigarros aos feridos que não se podiam mexer. Quando lhe quiseram roubar os cigarros, porém, ele agarrou no colarinho do ladrão, um tipo sardento e de maçãs do rosto largas, costas largas, ancas largas e disse-lhe: alto aí! Com o tabaco de um soldado não se brinca! Então o sardento afastou-se e caiu a noite e o pai teve a impressão de que alguém olhava para ele.
Na cama ao lado havia uma múmia. Tinha os olhos negros como dois poços profundos.
- Queres fumar? - perguntou ele.
A múmia não respondeu.
- Fumar é bom - disse ele, e acendeu um cigarro, procurou a boca da múmia entre as ligaduras.
A múmia estremeceu. Talvez não fume, pensou ele, e retirou-lhe o cigarro. A lua iluminou a ponta do cigarro, que estava manchada por uma espécie de bolor branco. Então voltou a introduzir-lhe entre os lábios, ao mesmo tempo que dizia: fuma, fuma, esquece-te de tudo. Os olhos da múmia não o largavam, talvez pensou ele, seja um camarada de batalhão que me reconheceu. Mas porque é que ele não diz nada? Talvez não consiga falar, pensou.

...

Em 1920 nasceu Hans Reiter. Não parecia um menino, mas sim uma alga. Canetti e creio que Borges também, dois homens tão diferentes, disseram que assim como o mar era o símbolo ou o espelho dos ingleses, a floresta era a metáfora onde vivam os alemães. Hans Reiter ficou fora dessa regra desde o momento em que nasceu. Não gostava da terra e menos ainda das florestas. Também não gostava do mar ou o que o comum dos mortais chama mar e que na realidade é só a superfície do mar, as ondas eriçadas pelo vento que pouco a pouco se foram convertendo na metáfora da derrota da loucura. Do que ele gostava era do fundo do mar, essa outra terra, cheia de planícies que não eram planícies e vales que não eram vales e precipícios que não eram precipícios.

Quando a zarolha lhe dava banho numa selha, o menino Hans Reiter deslizava sempre das suas mãos ensaboadas e descia até ao fundo, com os olhos abertos, e se as mãos da da sua mãe não o voltassem a puxar até à superfície ele teria ficado ali.

Quando Hans Reiter viu pela primeira vez uma floresta de algas emocionou-se tanto que se pôs a chorar debaixo de água.

...
 - Os galeses são uns porcos - disse o coxo a uma pergunta do filho - Uns porcos absolutos. Os ingleses também são uns porcos, mas um pouco menos do que os galeses. Embora na verdade sejam igualmente porcos, mas tentam parecer um pouco menos porcos, e como sabem fingir bem no fim até parecem. Os escoceses são mais porcos do que os ingleses e só um pouco menos porcos do que os galeses. Os franceses são tão porcos como os escoceses. Os italianos são leitões. Leitões dispostos a comer a sua própria mãe porca. Dos austríacos pode dizer-se o mesmo: porcos e porcos e porcos. Nunca confies num húngaro. Nunca confies num boémio. Lambem-te a mão ao mesmo tempo que te devoram o dedo mindinho. Nunca confies num judeu: esse come-te o polegar e ainda por cima deixa-te a mão coberta de baba. Os bávaros também são uns porcos. Quando falares com um bávaro, meu filho, procura ter o cinto bem apertado. Com os renanos mais vale nem sequer falar: em menos tempo do que canta um galo hão-de querer cortar-te a perna. Os polacos parecem galinhas, mas se lhes arrancares quatro penas verás que têm pele de porco. A mesma coisa acontece com os russos. parecem cães famélicos, porcos dispostos a comer quem quer que seja, sem perguntar duas vezes, sem o mais pequeno remorso. Os sérvios são iguais aos russos, mas em pequeno. São como porcos disfarçados de cãos ... Acerca dos gregos só posso dizer que são como os  turcos: porcos peludos e sodomíticos. Só os prussianos se salvam. Mas a Prússia já não existe. Onde está a Prússia? Tu vê-la? Eu não a vejo. Às vezes tenho a impressão que morreram todos na guerra.

Roberto Bolaño - 2666, Quetzal.



Anais Nin




Louis não havia maneira de ter sono. Deitado de barriga para baixo, cabeça enfiada  na almofada, começou a roçar-se pelos lençóis tépidos, como se fosse um corpo de mulher. Mas essa fricção ainda mais o excitou, pelo que resolveu parar.
Saltou da cama e olhou para o relógio. Eram duas horas. Que fazer para se acalmar? Resolveu sair. A lua cheia iluminava o caminho. o sítio, uma praia na costa normanda, estava cheio de vivendas que se podiam alugar por noite ou à semana. Louis foi vagueando por ali à toa. Até que viu luz numa das vivendas. Era uma isolada, no meio do arvoredo. Ficou intrigado ao ver que ainda havia gente a pé àquela hora. Aproximou-se sem fazer barulho; as suas pegadas desapareciam na areia. As persianas estavam corridas, mas não até baixo, de modo que podia ver à vontade o que se passava lá dentro. Deparou-se-lhe um espectáculo dos mais extraordinários: uma cama muito larga, coberta de almofadas e mantas em desordem, como se tivesse havido ali uma grande batalha; a um canto, um homem enfiado numa pilha de almofadas, levemente reclinado, à laia de um paxá no meio do seu harém, ar calmo e satisfeito, completamente nu, pernas abertas; e, igualmente nua, uma mulher que Louis só podia ver de costas, com a cabeça enfiada entre as pernas do paxá, agitando-se em contorções várias, as quais pareciam dar-lhe um tal prazer que o seu rabo todo ele vibrava e os músculos das pernas se retesavam, como se estivesse pronta a saltar.
De vez em quando o homem poisava a mão na cabeça da mulher, como que a conter a sua fúria. Tentava libertar-se. Mas ela então levantou-se num salto e pôs-se em cima do paxá, ajoelhada contra a cara dele. Assim já ele não se podia mexer. Ficava com a cara mesmo por baixo do sexo dela que, encolhendo um pouco a barriga, se deixou ficar naquela posição. Como ele não podia fazer o mais pequeno gesto, era ela que tinha de se chegar à boca dele, que ainda lhe não tocara. Louis viu o sexo do homem erguer-se e alongar-se. tentou pôr a mulher em cima dele. Mas ela continuou na mesma posição, admirando o seu próprio ventre, tão perfeito, os pêlos, o sexo mesmo junto à boca dele.
Depois, devagar, devagarinho, foi-se erguendo mais e, curvando a cabeça, ficou a olhar para aquela boca que, entre as suas pernas, salivava de prazer.
Mantiveram-se nessa posição durante longos momentos. Louis estava num tal estado de excitação que se afastou da janela. Se tivesse ali ficado mais tempo, atirar-se-ia para o chão e satisfaria o seu desejo de qualquer maneira, mas isso não queria ele.
Nisto teve a sensação de que em cada vivenda daquelas deviam estar a passar-se coisas de que ele gostaria bem de tomar parte. Estugou o passo, obcecado pela imagem daquele homem e daquela mulher, da barriga redonda e rija da mulher, toda arqueada por cima do homem...


Anais Nin - A mulher nas dunas in Passarinhos.



Mondongo




E. M. Cioran


Rebentar de riso um segundo antes do orgasmo, única maneira de desafiar as prescrições do sangue, as solenidades da biologia

E. M. Cioran - Silogismos da amargura.


Henry Miller


Quando paro e me encosto a um candeeiro para acender um cigarro, até o candeeiro me parece amigo. Não é uma simples coisa de ferro: é uma criação da mente humana, com certo feitio, dobrada e formada por mãos humanas, soprada por hálito humano, colocada por mãos e pés humanos. Viro-me e passo as mãos pela superfície de ferro. Quase parece falar-me. É um candeeiro humano. Pertence, como a folha de couve, como as peúgas rotas, como o colchão, como a pia da cozinha. ocupa tudo uma certa posição, num certo lugar, como a nossa mente em relação a Deus. O mundo, na sua substância visível, tangível, é um mapa do nosso amor. E, no seu meio mais meio, no meio do seu meio, caminha este jovem, eu próprio, que não é outro senão Gottlieb Leberecht Müller.

Henry Miller - Trópico de Capricórnio.



Sebald


Os relógios sempre me deram vontade de rir

W. G. Sebald - Austerlitz


Mário Cesariny


aeroporto

a mala que segue viagem
assim como o avião
têm a grande vantagem
de não terem coração

só formas amplas - metais
de uma brancura de praia -
dentro vão sonhos a mais
e é bom que a mala não caia

mala do sonho vais bem
assim deitada de lado
chega-te a roupa que tens
ou chamamos o criado?

ou chamamos o fantasma
da queda livre no espaço
verga do pássaro de aço
onde a poesia se espasma?

      ......................................

arte de inventar os personagens


Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos
e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes
e os personagens aparecem

                         Mário Cesariny - Manual de Prestidigitação.



Ludwig Wittgenstein



Ludwig Wittgenstein


Nenhum clamor de tormento pode ser maior do que o clamor de um homem.
Ou mais uma vez, nenhum tormento pode ser maior do que aquilo que um único ser humano pode sofrer.
O planeta inteiro não pode sofrer tormento maior do que uma única alma.

Ludwig Wittgenstein, 1944.

Este sangue é por te amar


João Miguel Fernandes Jorge



29

Depois de ter falado toda a manhã
com um estranho acerca daquela anónima
cabeça de rapaz do século dezasseis

sinto que é de matéria breve que
tenho composto todos os meus objectos
todos ordenados à vida e sem aquela

alegria que devemos encontrar
no que tentamos reduzir ao tempo.
Uma só hora daquela cabeça não
caberia em toda a manhã

porque ela é lisa como vidro
e nenhuma dissertação de arte
a poderá tornar densa e as suas ideias
essas somos nós que

as fabricamos.

João Miguel Fernandes Jorge, Obra Poética Vol. I.

A. M. Pires Cabral

A MOSCA DO SERVIÇO DE URGÊNCIA


A velha está sentada na sala de espera.
Chegou amparada pela filha, que a depositou ali
enquanto trata dos papéis. A aflição
deve ter sido tão súbita e imperiosa,
que a velha vem descomposta,
não houve tempo para atender a pudores.
Perdeu algures um chinelo.

Está sentada, muito branca, e parece
mascar as dores com as gengivas nuas.

Tem a morte pousada na cara, sob a forma
de uma mosca insistente e de ar atarefado.
Não tem forças para a sacudir.
A mosca aproxima-se da boca, depois parece
interessar-se pelo nariz. Delicia-se
com o muco ao canto do olho, como a criança
que come a ocultas um gelado interdito.
É como se estivesse em casa e percorresse
os aposentos ao sabor dos afazeres.
Cansada do rosto, levanta voo
e vai pousar, desta feita, numa mão.
Mas breve volta atrás, como se se tivesse
esquecido ali de alguma coisa,
e demora-se um pouco a tentar lembrar o quê.

Esfrega uma na outra as patas dianteiras,
celebrando a vitória que logo virá.

A velha já nem se dá conta
desse penúltimo escárnio da morte.
Está visivelmente madura para ela,
pronta a entregar-lhe os destroços do corpo.

Consumada a posse daquele território,
a mosca vai no seu voo fortuito
em busca de mais carne a requerer.
Há dezenas de doentes na sala.
Apalpa-os um por um, como se faz aos figos,
para saber qual deve ser comido
em primeiro lugar.

O mais certo é que acabe - mais dia, menos dia -
por devorá-los todos.

A Lenta Volúpia de Cair



O poema não é mais verdadeiro nem mais consciente do que uma teoria científica, (provavelmente, é-o menos) o poema não contém atrito por definir o mundo ou desvendar a metafísica. O atrito do poema tem a ver com o corpo, a distância e a lentidão

Pedro Eiras, A Lenta Volúpia de Cair.


Roberto Piva



O coração gelado do pavão na noite
ouvindo estrelas
no vazio de um grande piano
não me surpreende agora
o sorriso de sua doce anatomia
as pernas quentes no meio da rua
todo meu rosto deslizando em lágrimas no
espelho
o negro animal do amor morreu de
fome nos acordes
finais de um peito nebuloso não outra vez
loiros fantasmas fornicando em meu olho

Roberto Piva: Lá Fora o vento espera – Piazas.


António Franco Alexandre



Aracne

Formoso amigo meu, podes cantar à lua
e amar outros mais lestos do que eu.
roer um osso, admirar as estrelas,
seres sábio e humano, além de belo.
Já vi que escreves um diário, com
as patas firmes, o pêlo luzidio,
e versos, onde porém há sempre
uma sílaba a mais, presa por fios.
Pouco te importas se eu existo ou não,
e ignoras, das aranhas, o tormento
quando a teia se rasga e é urgente
tomar medidas, e tecer, à espreita
de alguma inócua presa imprevidente.
Voas tão solto, lá no firmamento,
que te tomam por pássaro ou cometa;
e meditas em vastos pensamentos... só não sabes
que ao rasgares o meu leito aqui deixaste
uma gota de sangue, a que estás preso.


António Franco Alexandre, Aracne.




Duas frases circulares

Escrever é inscrever num círculo o exterior de todos os círculos

Maurice Blanchot

A morte é a possibilidade da impossibilidade da possibilidade.


Martin Heidegger


... Sim, nós compreendemos, embora nos irrite às vezes com as suas mudanças de feitio, nós compreendemos, visto que somos fantasmas.
    Mas você, poderão vocês compreender  os nossos sentimentos, vocês que nunca foram mortos?

                                                                  FIM

Boris Vian, através de dois pseudónimos: O. Sechan, I. Maslowsky: Vocês que nunca foram mortos.


Manuel António Pina


HEGEL, FILÓSOFO ESPORÁDICO?


 Ninguém morreu de morte tão natural como Hegel.
Alguns anos antes tinha descoberto, horrorizado,
que Deus o havia colocado, exactamente no centro de Tudo.

Morreu como um bárbaro: subitamente o seu coração
parou de bater, e inclinou levemente a cabeça sobre o lado direito.
É sempre outro que escreve. (Como poderia o Escritor, ele próprio,
mesmo quando é um Filósofo, reconhecer o que está ali para ser escrito?)

Quem escreveu o poema «A Eleusis» que Hegel, há 200 anos
dedicou a Hölderlin? Porque combateu Hegel a positividade?
A que descobertas chegou Schelling, conservador em Berlim,
entre os seus papeis? Que mão deitou fogo, em 1946, à sala dos Apócrifos
do Museu Gnóstico de Túbingen?

                   Slim da Silva, hetero-personagem de Manuel António Pina em: Aquele que quer morrer, 1978, Regra do Jogo.

A morte do Super Homem


Renée Brock


Nova Iorque

Com as tuas paralelas e perpendiculares,
Nova Iorque, em avenidas e numeradas ruas,
e a quinta artéria
que fere na extremidade a Broadway
como se fosse uma bela boca assassina.

Amei-te e odeie-te, ilha de Manhattan.

Ilha! Pode-se ter a consoante de Ilha
e ser o que tu és, Nova Iorque?
Os teus invasores seduziram os índios
para erguer os seus monstros;
e o grande silêncio dos mortos
cobre os subsolos para atrair os vivos.

Ao meio-dia, a Quinta Avenida é um rebanho de milhares
de
cabeças,
compacto e morno. Vazia. Deserta.

As pessoas regem-se pela hora e pelo almoço.
           A electricidade morta fará de ti
em poucas horas um asilo de alienados,
uma morgue, um excremento.

Resta-te o luxo possível dos homens do lixo, 
os teus caixotes acumulam-se, entranhas abertas,
espalhadas em caos nas vitrinas, no meio dos passeios.

E portanto, um perfume fabuloso toma de assalto a
atmosfera de vidro e aço.
Despojas-te de todas as raízes. Sim, tens o teu
Central Park onde, deambulam os sem-abrigo e algumas
faias magras perdidas dos Hilton; alguns ramos de arbustos,
algumas plantas de cinerários. Mas NOVA
IORQUE,tu és eternamente a viúva do vegetal.

A rua Quarenta e dois é a rua do sexo.
Cinema porno. Undergrounds. Montras de horrores.
Erotismo a toda a hora.
Outrora, ainda menina, em Santa Margarida, subúrbio
do carvão, lia-se nas vitrinas: «Água quente e a toda a hora».

     Do cimo da torre mais altas dita Empire,
avistei-te, e tu pareceste-me nua, Cidade.
Os teus membros erguidos minúsculos
emergem de um Lago de sombra onde fervilham os peões,
carros, motos.
     Na verdade, Cidade, tu és tão pequena,
face ao universo.

Durante os dias, os meus passos, incessantes, impregnam
as tuas calçadas.
Vou engrossando o teu rebanho sombrio
Mas nos teus museus refresco-me nos azuis
indizíveis dos teus Vermeer.
Via Pop-Art e a sua vulgar vitalidade, as suas cores que uivam.

Nova Iorque, a noite, o dia, os passos inumeráveis de homens
que inscreveram com estrelas o teu macadame.

Mas o passo de um homem não vale uma estrela:
Sob os edifícios altos pende uma sombra pesada.

Então, à noite, caminho sob o céu aberto, e no
embrulho compacto das estrelas, busco a estrela MILLER,
esse gigante Lírico.

                                                   Renée Brock (1912-1980) tradução de Sílvia C. Silva
                                                   in Revista Piolho nº 7.









No Lugar do perigo, pôr o azul...

Luís Quintais






Arnaldo Saraiva

Abaixo as opiniões não contraditórias

Arnaldo Saraiva, O escritor, a escrita e a sociedade actuais in Literatura Marginal
                                                                                                                          izada