E a tarde escorre sem estremecer. Nem um golpe de ar, nem um pássaro, um ruído ao menos a a descer dos montes pela estrada. Isto, no fundo, é morte. podia-se pôr uma cegonha na torre da igreja - seria a vírgula. um pescoço longo e curvo, espalmado no ar sobre o largo. As cegonhas pensam muito nos filhos, parece. Andam de terra em terra a pensar neles.
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Aí vai a dona da pensão: um mastodonte. Acaba de sair por baixo da minha janela, carregada de gorduras e de lutos, e calculo que de boca aberta para desafogar o seu trémulo coração. Atravessa a rua perseguindo a criada-criança, como é hábito. Entra no café: mal cabe na porta. Tem cabecinha de pássaro, dorso de montanha. E seios, seios e mais seios, espalhados pelo ventre, pelo cachaço, pelas nádegas. Inclusivamente, os braços são seios atravessados por dois ossos tenríssimos. "Jesus, o que são as coisas," queixa-se ela a todo o momento.
Com um corpo assim não podia deixar de ser uma criatura sofredora, maternal. Vemo-la sentada, formiga-mestra duma hospedaria de caçadores: toda ela transborda generosidade. O modestíssimo cheiro a sabão amarelo, e começamos a perceber uma música gentil lá no alto - a sua voz.
José Cardoso Pires, O Delfim.
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