sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Camilo José Cela


Sim, encaras o problema uma e outra vez e continuas sem poder resolvê-lo, é provável que tenhas uma solução, mas tu ignora-la. Chamar as coisas pelo seu nome, não chamar as coisas pelo seu nome, renegar de todo o humano e o divino, não renegar de todo o humano e o divino, deitar-se com esta mulher que cheira a sebo e a água-de-colónia, pode ser Madalena, aliás imaculada Múgica, e também pode não o ser, passear pelo parque e pelos solares onde os pares fazem as sensuais e inevitáveis porcarias, que acabarão por trazer-lhes a debilidade, ver com satisfação como espancam um menino até matá-lo, não ver com satisfação como espancam um menino até matá-lo, há meninos que demoram terrivelmente a morrer, fazer figas ao paralítico que vende tabaco (se calhar é um herói de qualquer guerra), não fazer figas ao paralítico que vende tabaco (se calhar é um herói de qualquer guerra), suicidar-se com gás, não se suicidar com gás, dar de comer ao faminto, não dar de comer ao faminto, dar de beber ao sedento, não dar de beber ao sedento, levar um bufo ao polícia, não levar um bufo ao polícia, compor sonetos, não compor sonetos, jogar dominó, não jogar dominó, assassinar um companheiro de colégio, não assassinar um companheiro de colégio, etc. Não, é inútil, tu não és Napoleão Bonaparte nem o rei Cirilo de Inglaterra, tu és carne de catequese, carne de prostíbulo, carne de canhão, tu és o soldado desconhecido, o homem a quem não brilha uma estrelinha na fronte, os homens que são carne de força costumam ter mais aprumo, a história dá muita confiança, tu estás entre o público - na catequese, na casa de prostituição, na frente - e, se bem que às vezes te creias o eixo do mundo, nunca conseguirás com êxito estar por cima ou à frente dos outros catacúmenos, dos outros frequentadores de mulheres públicas, dos outros soldados, nunca ninguém te fixará, mas não deves lamentá-lo, cada um chega até onde pode e os outros deixam e a ti permitem-te viver, parece-te pouco?


Camilo José Cela, São Camilo 1936.


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