A sua mãe era zarolha. Tinha o cabelo muito louro e era zarolha. O olho bom era celeste e calmo, como se ela não fosse muito inteligente, mas em compensação boa, de sobra. O seu pai era coxo. Tinha perdido a perna na guerra e passar um mês num hospital militar perto de Düren, pensando que daquela não saía e a ver como os feridos que se podiam mexer (ele não!) roubavam os cigarros aos feridos que não se podiam mexer. Quando lhe quiseram roubar os cigarros, porém, ele agarrou no colarinho do ladrão, um tipo sardento e de maçãs do rosto largas, costas largas, ancas largas e disse-lhe: alto aí! Com o tabaco de um soldado não se brinca! Então o sardento afastou-se e caiu a noite e o pai teve a impressão de que alguém olhava para ele.
Na cama ao lado havia uma múmia. Tinha os olhos negros como dois poços profundos.
- Queres fumar? - perguntou ele.
A múmia não respondeu.
- Fumar é bom - disse ele, e acendeu um cigarro, procurou a boca da múmia entre as ligaduras.
A múmia estremeceu. Talvez não fume, pensou ele, e retirou-lhe o cigarro. A lua iluminou a ponta do cigarro, que estava manchada por uma espécie de bolor branco. Então voltou a introduzir-lhe entre os lábios, ao mesmo tempo que dizia: fuma, fuma, esquece-te de tudo. Os olhos da múmia não o largavam, talvez pensou ele, seja um camarada de batalhão que me reconheceu. Mas porque é que ele não diz nada? Talvez não consiga falar, pensou.
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Em 1920 nasceu Hans Reiter. Não parecia um menino, mas sim uma alga. Canetti e creio que Borges também, dois homens tão diferentes, disseram que assim como o mar era o símbolo ou o espelho dos ingleses, a floresta era a metáfora onde vivam os alemães. Hans Reiter ficou fora dessa regra desde o momento em que nasceu. Não gostava da terra e menos ainda das florestas. Também não gostava do mar ou o que o comum dos mortais chama mar e que na realidade é só a superfície do mar, as ondas eriçadas pelo vento que pouco a pouco se foram convertendo na metáfora da derrota da loucura. Do que ele gostava era do fundo do mar, essa outra terra, cheia de planícies que não eram planícies e vales que não eram vales e precipícios que não eram precipícios.
Quando a zarolha lhe dava banho numa selha, o menino Hans Reiter deslizava sempre das suas mãos ensaboadas e descia até ao fundo, com os olhos abertos, e se as mãos da da sua mãe não o voltassem a puxar até à superfície ele teria ficado ali.
Quando Hans Reiter viu pela primeira vez uma floresta de algas emocionou-se tanto que se pôs a chorar debaixo de água.
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- Os galeses são uns porcos - disse o coxo a uma pergunta do filho - Uns porcos absolutos. Os ingleses também são uns porcos, mas um pouco menos do que os galeses. Embora na verdade sejam igualmente porcos, mas tentam parecer um pouco menos porcos, e como sabem fingir bem no fim até parecem. Os escoceses são mais porcos do que os ingleses e só um pouco menos porcos do que os galeses. Os franceses são tão porcos como os escoceses. Os italianos são leitões. Leitões dispostos a comer a sua própria mãe porca. Dos austríacos pode dizer-se o mesmo: porcos e porcos e porcos. Nunca confies num húngaro. Nunca confies num boémio. Lambem-te a mão ao mesmo tempo que te devoram o dedo mindinho. Nunca confies num judeu: esse come-te o polegar e ainda por cima deixa-te a mão coberta de baba. Os bávaros também são uns porcos. Quando falares com um bávaro, meu filho, procura ter o cinto bem apertado. Com os renanos mais vale nem sequer falar: em menos tempo do que canta um galo hão-de querer cortar-te a perna. Os polacos parecem galinhas, mas se lhes arrancares quatro penas verás que têm pele de porco. A mesma coisa acontece com os russos. parecem cães famélicos, porcos dispostos a comer quem quer que seja, sem perguntar duas vezes, sem o mais pequeno remorso. Os sérvios são iguais aos russos, mas em pequeno. São como porcos disfarçados de cãos ... Acerca dos gregos só posso dizer que são como os turcos: porcos peludos e sodomíticos. Só os prussianos se salvam. Mas a Prússia já não existe. Onde está a Prússia? Tu vê-la? Eu não a vejo. Às vezes tenho a impressão que morreram todos na guerra.
Roberto Bolaño - 2666, Quetzal.
Um gênio sem dúvida.... minha geração (seja ela de Brasileiros, argentinos ou chilenos) deve muito a esse incrível homem que viveu no limite como um grande poeta..... : } obrigado pela publicação esse ótimo texto.
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