costumava escrever como se não houvesse tempo
como se fosse morrer amanhã
e os versos penassem pela vida fora
sem rumo e sem horas, invisíveis e sem voz –
um dia os olhos apagaram-se subitamente e ficaram cinzentos.
mal conseguia vislumbrar as palavras antecedentes.
a mente espreguiçava-se com braços de borracha,
não terminava nem resplandecia.
as mãos ficavam escorregadias como patas de rãs
e deixavam fugir letras fundamentais,
provocavam o intervalo e sucessivos lapsos.
invadido pelo medo saltou para as ruas da cidade
como um tonto, em confronto com ausências, uma alma angustiada -
estavam esgotadas todas as palavras leves como penas
sobravam muitas palavras pesadas, junto ao chão
como os pós negros de Alexandria, concluía.
parou junto a uma esquina de semáforo
ao cair de um amarelo e depois um vermelho.
em frente, uma loja em cor de fim de tarde
parada como um cotovelo, sem mesa, num rosto de casas.
compraria chocolates, a caixa verde e pequena.
não era a primeira vez, via-se pela pressa da porta que rodava.
sorriu-lhe como uma aurora nórdica, matutina, mágica.
o cabelo era farto e arranjado, a pele fina, clara.
sorriu-lhe na mão branca
sorriu-lhe no gesto ao embalar de cuidados,
sorriu-lhe no gesto de esticar a fita como se fosse um penteado.
não era a primeira vez que comprava chocolates
mas pela primeira vez, talvez premonizado,
um cabelo , um sinal, uma recordação.
talvez mais, uma memória que observava –
correu para casa, para junto da janela de vidros quadrados.
não podia evitar um olhar mais demorado, desapertou o adesivo,
com cuidado, e retirou a caixa, com cuidado,
mantendo a respectiva forma enquanto observava.
um único cabelo, preso no papel vazio
sem a caixa, de onde retirava agora a primeira fatia de chocolate
que derretia doce, até adquirir aquele sabor ácido, fresco,
um condimento que lhe elevava os olhos longe do cimento
e pousava na mente uma praia distante de há muito tempo -
era a forma adequada, um paralelepípedo rectângulo,
não um cubo rodeado de quadrados,
mas com um cabelo que teimava, parado.
lentamente o chocolate envolvia o palato,
perdia a consistência, envolvia-se e enrolava-se, desenrolava-se e demorava-se
como uma lâmpada de economia que apenas difundisse uma certa penumbra
de um certo fim de tarde, depois de uma certa maré vaza
e da compra de uma caixa de chocolate.
a televisão plasmática era um espaço negro, um silêncio aberto, não dizia nada.
um livro mostrava letras em itálico,
palavras, frases, pontos finais, parágrafos.
talvez o livro tivesse também alguma alma,
talvez tivesse um cabelo na página centro e trinta ou cento e trinta e quatro,
talvez incorporasse também um sinal, não descodificado, um segredo.
virou, folheou e rodeou o livro com olhos de águia, afilados perante o pó,
o traço, o pormenor de uma linha e desistiu ao fim de dez minutos. pousou o livro.
permaneceu quieto, fechado, como um mocho no cimo de uma árvore;
uma capa negra, sem letras douradas –
um ar interior de uma anterior caixa de chocolate
mantinha a forma sólida de um afecto
- um rosto, um ombro, lábios sobre lábios -
um único cabelo, um cabelo adorado –
os dedos macios, suavemente, deslizaram dentro da caixa
e retirou uma outra fatia fina, doce de início,
e esperou pelo frio, de olhos fechados –
subitamente achou-se doente.
procurou o termómetro, os comprimidos do resfriado.
com uma mão sobre a cabeça correu para a chaleira.
um chá de limão, não tinha, talvez cidreira –
esperou um vapor sem assobio,
embora lhe recordasse Tex Avery, comboios e filmes.
abriu a asa esquerda porque lhe dava mais jeito.
o termómetro, aquele pedaço de plástico flácido e electrónico
apontava a temperatura habitual, sem alarme. acalmou-se.
dentro da chaleira a água tremia.
trinta e sete depois das sete observou a rua escura, passou um autocarro.
o vapor formava gotículas no relógio por cima do frigorífico. não havia perigo.
como um balão sem fita, percorreu os outros cantos da casa e esvaziou a ansiedade.
riu-se sozinho naquele espectáculo de folhear o livro,
talvez um corvo, a torre de um castelo, anabell lee, vozes, ecos,
porque não um copo de vinho?
ria-se, devia estar completamente louco
e sentia-se ridículo, como um burro que urrasse sozinho
sem que ninguém ligasse
ou como se alguém risse daquele rir esganiçado;
dos lábios trémulos, dos olhos grandes e o pescoço a destacar-se –
basta!
abriu de novo a caixa e procurou no envólucro,
naquela bolsa preta de enfeites dourados, mais um pouco de chocolate,
a derreter, a perder de doce
a demonstrar que o fresco era um agriveludo endeusado.
parou de rir. sentou-se na mesa. os olhos brilhavam como planetas cintilantes
imediatamente acendidos por magia, como se fossem estrelas em noite limpa –
recomeçava a escrever como se não houvesse inverno.
como se usasse luvas de lã de dedos cortados
e um barrete de algodão com berloque longo sobre o ombro.
como se usasse um pijama de riscas azuis convenientes
e não houvesse guardas naquela prisão,
apenas um ligeiro cansaço de mão que desabava a caneta,
por momentos, enquanto um néctar reaquecia as palavras e o poema
e recomeçava furiosamente, na mesma linha, pouco depois o ponto,
mais um pouco, um ponto e vírgula
e uma outra linha, retomando a ideia e colocando-a em Marte,
de cor verde, surpresa e inusitada.
recomeçava a escrever como se fosse um filósofo
e procurasse a verdade, sabendo-a inalcançável
tentando perceber o quotidiano e o complexo, distanciando-se,
alargando o leque, observando com um binóculo nebulosas saltitantes,
interpretando estupefacto a cerimónia das lágrimas
na coreia mais a norte, mais próxima da china:
o que diria Átila de tanta lágrima,
ele que sobreviveu ao desengano, nas batalhas
e que provavelmente agradeceu não saber a verdade
antes da espada e de um golpe único, directo, acertado?
recomeçava a escrever como se tivesse vinte e três anos
nas sombras de um beliche de onde surgiam livros misteriosos,
gabardines de detectives, comboios sud express e um apito longo
uma fumarada de fornalha nos braços vigorosos, queimando carvão
e uma locomotiva de nariz, nos carris, correndo mundo
- um dia vou a Paris e a Nova Iorque, ao Quebeque dos índios -
um dia vou ser feliz -
um dia vou ser grande com as mãos de gigante e os dedos compridos
e os pés como plantas, cheios de raízes, habituados a muitos caminhos:
penhascos altos, pernas de rios, calças de margens, verdes ainda
ou areias mais leves e mais macias
e fragas fugidias, as mais difíceis -
um dia vou ser grande e escrever com muitas letras,
com muitas ideias no umbigo,
vou descobrir umas asas para um ano inteiro –
recomeçava a escrever não com a fúria e não com o medo
mas com a tranquila ternura de um olhar sensitivo.
um ligeiro abrir de lábios mostrava um sorriso fácil,
era quase fim de ano, e era noite e estava sem peso.
bebericava o chá quente, saboreava o chocolate.
passava das nove, não sentia fome.
as palavras surgiam tão fluídas como folhas de algas,
num mar tão próximo.
era fim de ano,
tudo recomeçava para ser diferente –
como aquele único cabelo
da esquerda para a direita, da direita para a esquerda,
como se fosse uma canção ténue em brisas de leveza
como se fosse um barco
num rio imaginário -
como se fosse morrer amanhã
e os versos penassem pela vida fora
sem rumo e sem horas, invisíveis e sem voz –
um dia os olhos apagaram-se subitamente e ficaram cinzentos.
mal conseguia vislumbrar as palavras antecedentes.
a mente espreguiçava-se com braços de borracha,
não terminava nem resplandecia.
as mãos ficavam escorregadias como patas de rãs
e deixavam fugir letras fundamentais,
provocavam o intervalo e sucessivos lapsos.
invadido pelo medo saltou para as ruas da cidade
como um tonto, em confronto com ausências, uma alma angustiada -
estavam esgotadas todas as palavras leves como penas
sobravam muitas palavras pesadas, junto ao chão
como os pós negros de Alexandria, concluía.
parou junto a uma esquina de semáforo
ao cair de um amarelo e depois um vermelho.
em frente, uma loja em cor de fim de tarde
parada como um cotovelo, sem mesa, num rosto de casas.
compraria chocolates, a caixa verde e pequena.
não era a primeira vez, via-se pela pressa da porta que rodava.
sorriu-lhe como uma aurora nórdica, matutina, mágica.
o cabelo era farto e arranjado, a pele fina, clara.
sorriu-lhe na mão branca
sorriu-lhe no gesto ao embalar de cuidados,
sorriu-lhe no gesto de esticar a fita como se fosse um penteado.
não era a primeira vez que comprava chocolates
mas pela primeira vez, talvez premonizado,
um cabelo , um sinal, uma recordação.
talvez mais, uma memória que observava –
correu para casa, para junto da janela de vidros quadrados.
não podia evitar um olhar mais demorado, desapertou o adesivo,
com cuidado, e retirou a caixa, com cuidado,
mantendo a respectiva forma enquanto observava.
um único cabelo, preso no papel vazio
sem a caixa, de onde retirava agora a primeira fatia de chocolate
que derretia doce, até adquirir aquele sabor ácido, fresco,
um condimento que lhe elevava os olhos longe do cimento
e pousava na mente uma praia distante de há muito tempo -
era a forma adequada, um paralelepípedo rectângulo,
não um cubo rodeado de quadrados,
mas com um cabelo que teimava, parado.
lentamente o chocolate envolvia o palato,
perdia a consistência, envolvia-se e enrolava-se, desenrolava-se e demorava-se
como uma lâmpada de economia que apenas difundisse uma certa penumbra
de um certo fim de tarde, depois de uma certa maré vaza
e da compra de uma caixa de chocolate.
a televisão plasmática era um espaço negro, um silêncio aberto, não dizia nada.
um livro mostrava letras em itálico,
palavras, frases, pontos finais, parágrafos.
talvez o livro tivesse também alguma alma,
talvez tivesse um cabelo na página centro e trinta ou cento e trinta e quatro,
talvez incorporasse também um sinal, não descodificado, um segredo.
virou, folheou e rodeou o livro com olhos de águia, afilados perante o pó,
o traço, o pormenor de uma linha e desistiu ao fim de dez minutos. pousou o livro.
permaneceu quieto, fechado, como um mocho no cimo de uma árvore;
uma capa negra, sem letras douradas –
um ar interior de uma anterior caixa de chocolate
mantinha a forma sólida de um afecto
- um rosto, um ombro, lábios sobre lábios -
um único cabelo, um cabelo adorado –
os dedos macios, suavemente, deslizaram dentro da caixa
e retirou uma outra fatia fina, doce de início,
e esperou pelo frio, de olhos fechados –
subitamente achou-se doente.
procurou o termómetro, os comprimidos do resfriado.
com uma mão sobre a cabeça correu para a chaleira.
um chá de limão, não tinha, talvez cidreira –
esperou um vapor sem assobio,
embora lhe recordasse Tex Avery, comboios e filmes.
abriu a asa esquerda porque lhe dava mais jeito.
o termómetro, aquele pedaço de plástico flácido e electrónico
apontava a temperatura habitual, sem alarme. acalmou-se.
dentro da chaleira a água tremia.
trinta e sete depois das sete observou a rua escura, passou um autocarro.
o vapor formava gotículas no relógio por cima do frigorífico. não havia perigo.
como um balão sem fita, percorreu os outros cantos da casa e esvaziou a ansiedade.
riu-se sozinho naquele espectáculo de folhear o livro,
talvez um corvo, a torre de um castelo, anabell lee, vozes, ecos,
porque não um copo de vinho?
ria-se, devia estar completamente louco
e sentia-se ridículo, como um burro que urrasse sozinho
sem que ninguém ligasse
ou como se alguém risse daquele rir esganiçado;
dos lábios trémulos, dos olhos grandes e o pescoço a destacar-se –
basta!
abriu de novo a caixa e procurou no envólucro,
naquela bolsa preta de enfeites dourados, mais um pouco de chocolate,
a derreter, a perder de doce
a demonstrar que o fresco era um agriveludo endeusado.
parou de rir. sentou-se na mesa. os olhos brilhavam como planetas cintilantes
imediatamente acendidos por magia, como se fossem estrelas em noite limpa –
recomeçava a escrever como se não houvesse inverno.
como se usasse luvas de lã de dedos cortados
e um barrete de algodão com berloque longo sobre o ombro.
como se usasse um pijama de riscas azuis convenientes
e não houvesse guardas naquela prisão,
apenas um ligeiro cansaço de mão que desabava a caneta,
por momentos, enquanto um néctar reaquecia as palavras e o poema
e recomeçava furiosamente, na mesma linha, pouco depois o ponto,
mais um pouco, um ponto e vírgula
e uma outra linha, retomando a ideia e colocando-a em Marte,
de cor verde, surpresa e inusitada.
recomeçava a escrever como se fosse um filósofo
e procurasse a verdade, sabendo-a inalcançável
tentando perceber o quotidiano e o complexo, distanciando-se,
alargando o leque, observando com um binóculo nebulosas saltitantes,
interpretando estupefacto a cerimónia das lágrimas
na coreia mais a norte, mais próxima da china:
o que diria Átila de tanta lágrima,
ele que sobreviveu ao desengano, nas batalhas
e que provavelmente agradeceu não saber a verdade
antes da espada e de um golpe único, directo, acertado?
recomeçava a escrever como se tivesse vinte e três anos
nas sombras de um beliche de onde surgiam livros misteriosos,
gabardines de detectives, comboios sud express e um apito longo
uma fumarada de fornalha nos braços vigorosos, queimando carvão
e uma locomotiva de nariz, nos carris, correndo mundo
- um dia vou a Paris e a Nova Iorque, ao Quebeque dos índios -
um dia vou ser feliz -
um dia vou ser grande com as mãos de gigante e os dedos compridos
e os pés como plantas, cheios de raízes, habituados a muitos caminhos:
penhascos altos, pernas de rios, calças de margens, verdes ainda
ou areias mais leves e mais macias
e fragas fugidias, as mais difíceis -
um dia vou ser grande e escrever com muitas letras,
com muitas ideias no umbigo,
vou descobrir umas asas para um ano inteiro –
recomeçava a escrever não com a fúria e não com o medo
mas com a tranquila ternura de um olhar sensitivo.
um ligeiro abrir de lábios mostrava um sorriso fácil,
era quase fim de ano, e era noite e estava sem peso.
bebericava o chá quente, saboreava o chocolate.
passava das nove, não sentia fome.
as palavras surgiam tão fluídas como folhas de algas,
num mar tão próximo.
era fim de ano,
tudo recomeçava para ser diferente –
como aquele único cabelo
da esquerda para a direita, da direita para a esquerda,
como se fosse uma canção ténue em brisas de leveza
como se fosse um barco
num rio imaginário -
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