domingo, 22 de janeiro de 2012

António Lobo Antunes

- Labilidade emocional - verificou com desprezo o cachimbo como se me observasse à lupa. - Manifesta labilidade emocional.
- Estes doentes têm muitas vezes reacções imprevisíveis  - explicou o médico. - Nunca convém falar com eles a sós. Comover-se é o menos mas com a agressividade não se brinca. Ainda outro dia levei um pêro de surpresa no corredor.
O Sequeira morreu meses depois, de repente, na rua, numa dessas transversais pequeninas perto do asilo, repletas de vendedores ambulantes, de crianças, de octogenários, de ferrugentos triciclos de bilhas de gás a cavalo no passeio: sífilis. Algumas injecções de penicilina teriam bastado para o curar, mas eu preocupava-me apenas em mandar tirar-lhe a roupa e fechá-lo na enfermaria deserta. Na cama ao lado um negro enorme urrava  o dia inteiro, exigindo a alta, a brandir uma muleta de inválido:
- Fodo os cornos do primeiro que se aproximar.
O Sequeira pousava o cigarro num prato amolgado de alumínio, e erguia para mim, seu dono, as pupilas submissas de cão: posso fazer o que me der na gana a estes gajos sem que nenhum dedo se erga para protestar : posso leucotomizá-los, roubar-lhes a potência, proibi-los de comer, esquecer-me deles. Posso não vir semanas a fio ao hospital. Posso interrogá-los acerca dos assuntos mais íntimos de um homem, dos seus segredos, das suas envergonhadas misérias, posso impingir-lhes as minhas certezas de plástico, a minha torta visão do mundo, a grandiosa pompa oca dos meus discursos. Empurrar-lhes a secretária para cima com percebejos. A voz de faca raspou-me de súbito as terrinas das orelhas:
-Como te davas em pequeno com os teus pais?


António Lobo Antunes - Conhecimento do Inferno.


Sem comentários:

Enviar um comentário