terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Beatriz Hierro Lopes


Geração do Silêncio

Somos sombras fugazes projectadas pela luz constante que ilumina a cidade. Seja nas ruas que a dividem e reencontram nas suas múltiplas encruzilhadas, onde desaguam multidões à velocidade do som dos seus passos, seja na claridade promíscua dos focos de diferentes cores numa pista de dança, fermentada ao sabor do álcool e das drogas que nos despertam os sentidos e adormecem o espírito; da televisão ininterruptamente ligada na inconstância do zapping, através da qual passam encadeamentos de imagens fragmentadas de filmes, documentários e séries cujo fim nunca é visto, na rapidez do clique para o próximo canal; do telemóvel sempre a vibrar com mensagens codificadas numa nova linguagem veloz que torna os segundos em minutos impossíveis, na impaciência dos limites de comunicação.

Nós somos o eco da dinâmica imparável da pós-modernidade! Para nós foi reinventando o conceito de tempo, e como saturninos deglutimos o presente na velocidade com que os nossos maxilares o absorvem, tornando-o numa breve memória de um passado recente. Vivemos o ritmo sonoro do mundo, na certeza que somos demasiado pequenos para o apreendermos na sede de o conhecer ou na apatia com que lhe viramos costas. Somos a geração da revolta sem revolução, herdeiros dos sonhos naufragados dos nossos antepassados próximos. Descendentes de idealistas estamos despidos de ideologias originais pela forma enciclopédica com que conhecemos o que pensaram e defenderam os que viveram antes de nós. Somos os mais frios juízes da História feita na nossa ausência.

Definidos pelas conquistas tecnológicas com as quais crescemos somo rotulados como “Geração Y”, “Geração Net” e “Geração Boomerang”. Os que antes de nós vieram e depois de nós se erguem, questionam o nosso valor. Quanto vales? Perguntam-nos, sem que a sua interrogação tenha a leveza de uma curiosidade ou a rispidez de um interrogatório. À sua semelhança pergunto-te qual o peso do teu valor singular, respondes-me: I have too much blood in my alcool. Sei que o corre hoje nas nossas veias é veneno, premiado pelas mais diversas marcas, engarrafado em vidros fumados de diferentes cores.

Qual é a tua cor? É o verde que te oferece viagens quase sonhadoras enquanto os teus olhos permanecem abertos? Ou o transparente lúcido da água que te ferve as vísceras e te engole o espírito? A dor absoluta da Vodka ou o devaneio do Absinto? Preferirás a mistura em shots sempre cheios como o poço estreito onde te afundas ou a elegância do copo alto borbulhante de Champanhe? Fala-me das tuas preferências, entusiasma-te com as tuas marcas e saberei ver em ti, o espectáculo da degradação dos nossos ossos. Farás o apelo mudo à abstinência. Mas nós somos os sequiosos. Os esfomeados, que devoram o Mundo em dentadas sôfregas de desejo. Aquele que o sexo não sabe silenciar.

Somos a boca sempre aberta na dilaceração comestível das palavras, o crânio recheado de rios que premeiam os sonhos com o cheiro a morte. Os ouvidos que reconhecem em todos os Requiem’s a fragilidade com que se quebram os espíritos. Errantes que vagueiam pelas montanhas despidas de roupas, sem nunca encontrar beleza igual a do olhar da mulher que naquele momento pára, na sacralidade do tempo que se esgota entre os seus dedos. A esfinge do eterno ponto entre o Passado e Futuro. O Presente encerrado na tosca configuração da nossa carne. Numa Humanidade sem tempo, sem memórias, sem antes nem depois, nós somos os seus mais adoráveis bastardos.

Todos os discursos, teorias e conversas sobre a morte conhecem em nós, o som oco do punho contra o muro. Ninguém pode ensinar um morto a temer a morte. Não enterramos apenas os nossos antepassados, não sepultamos como todas as gerações os nossos sonhos no solo propicio as colheitas dos que virão depois de nós, nem choramos o fim dos que por momentos amamos.

Procurem o nosso espírito debaixo das pedras - é esse o seu berço.Comprimidos entre a terra lamacenta e o frio do granito. Nascemos mortos por isso vivemos mais do que qualquer outro vivo. Não há amor possível à vida. Sabe-lo. Violamo-la como exímios soldados perdidos no enredo de uma guerra que não é a sua. Não honraremos os princípios do luto monocórdico, não consolaremos carpideiras de ocasião, não escreveremos belas peças sobre o mistério do corpo em putrefacção. Seremos não a Ira do Homem sobre Deus, mas a revolta dos Deuses sobre os Homens. Porque a Perfeição está nos nossos olhos e os nossos membros desgastados movem-se na dança imparável do Universo, sem medo, sem tonturas, sem amarras. Somos de peito nu, o Enforcado e a nossa corda é a trança com que interligamos o que fomos e seremos, no altar do que somos.

Chamam-nos perdidos, em analogia as sombras. Sentenciam-nos a juventude e amaldiçoam-nos a velhice. Não sabem eles que a Sombra que se ergue atrás de nós iluminada pelas luzes eléctricas de todas as cidades, é da altura da escadaria que conduz ao Inferno das Mil Luzes, que como bons proscritos descemos todas as noites, para alimentar o nosso espírito da sede de fogo. Vejam-nos altos. Soberbos. Tiranos de narizes escondidos nas páginas de um Moleskine. A Genialidade não se banha em nós, não resiste ao nosso olhar. Génios existiram e génios morreram. Nós somos apenas os seus coveiros e os criminosos que os desterram, arquivistas dos seus traços, guardiões das suas pequenas revelações. O único caminho possível é o das pedras, das tíbias e caveiras, é sobre ele que nos elevamos e é nele que nos assassinamos. Nada de suicídio: Nostálgico feminino. O adeus ao mundo que nos vira as costas. Só o assassinato é digno. Somos a vitima agarrada à ilusão da vida e o maldito que a degola na sabedoria da morte.

No fim, apenas o esquecimento nos aguarda. Por isso bebemos até que não reste uma única gota no copo de plástico do bar a que vamos, fumamos até que os nossos pulmões não consigam consumir mais oxigénio e drogamo-nos até que as sensações nos corrompam despertando selvajaria das emoções. E todos os nossos actos parecem gritar: Je me crois en enfer, donc j’y suis! Nós que vivemos todas as noites tal como a Nuit de L’Enfer, de Jean-Arthur Rimbaud. Porque sabemos que apenas vivendo o inferno podemos atingir o céu, só mergulhando nas chamas que nos dilaceram a carne poderemos ver a anatomia dos nossos ossos e redescobrir na configuração que se prende além dele, o vazio que narra a dissolução do eu.

Ambicionamos apenas o inalcançável - Le silence est impossible. C’est pourquoi nous le désirons -, nunca a afirmação de Maurice Blanchot definiu com tanta precisão uma geração como a nossa. Nós, a Geração do Silêncio. Atulhados em roupas de marcas conhecidas, sempre a par das últimas novidades do mundo da música. Excitados pela forma como os nomes de autores nos percorrem a boca, edificamos analogias em que as nossas experiências pessoais recriam as alucinações das suas personagens.

Trazemos para a realidade a ficção, seja na maneira como a nossa identidade virtual se dilui na veracidade com que nos mascaramos quotidianamente ou na heresia com que transgredimos a moralidade socialmente aceite. Dormentes vivemos a superficialidade, sem que o excesso nos permita esquecer: ¿Qué es la vida? Una ilusión, una sombra, una ficción, y el mayor bien es pequeño: que toda la vida es sueño y los sueños, sueños son, no poema de Calderón de la Barca, que renasce das profundezas de um século XVII hispânico. A eutopia da nossa geração é a possibilidade de existência no não-tempo, o imortal aqui e agora, o ponto fixo da encruzilhada onde o passado, presente e futuro se interpenetram no silêncio que abarca tudo. Possuídos e possuidores de uma plenitude inalcançável.

Perguntam-nos, pois, quanto valemos.

O nosso peso é o das estrelas que nos iluminam e recordam que o Anjo não é apenas Terrível, o Anjo é a Blasfémia do Mundo Moderno e a Libertação do Silêncio. Existimos e existimos como nenhuma outra geração existiu antes de nós. Somos únicos porque somos os receptáculos de tudo o que foi novo e será novo, na musicalidade dos anos que se desdenharam depois da nossa morte.

Somos a rapariga órfã e violada pelo seu tio, a deglutir em tragos largos a garrafa de Whisky roubada num supermercado, a dançar sem música sobre a campa 902 do Cemitério do Prado do Repouso aos gritos: Só se é imortal enquanto se vive. Somos a menina de 16 anos a mergulhar a mão na água benta da Sé Catedral depois de experimentar LSD - Vês? Vês, Beatriz, os demónios que vivem na água? Vamos morrer e o meu corpo vai ser velado na Igreja da minha terra. Somos o poeta bêbado e cocainómano, na fragmentação do seu espírito - Hoje sei que as minhas asas de Anjo não servem para voar mas para escavar a terra e mergulhar o meu corpo nas chamas do inferno. O Anjo é diabólico só assim pode ser celestial. Somos o advogado com a garrafa de Porto à frente de uma Macieira, de rosto enegrecido pelas fagulhas da fogueira, a saborear o vento: Only throught time time is conquered, de T.S. Eliot.

Quanto Vales? - Pergunto à tua sombra. Em silêncio respondes-me: Menos que nada e mais que tudo.


                                                           Beatriz Hierro Lopes, Criatura nº 1.


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