O BANHO DAS NEGRAS
(Início de A mulher obscura,)
Em casa de Laécio não havia álbuns. A família de meu
companheiro de infância parecia não ter tradição nem história.
Lembro-me que um dia, perguntando-lhe como se chamava seu
avô, ele me disse:
— Morreu há muito tempo. Não me lembro como era, mas
papai deve saber. Um dia pergunto.
Recordo, porém, que era, de todos os meus amigos, o que
mais me atraía.
Talvez não fosse o companheiro em si, em quem, já por
aquele tempo, percebia uma capacidade de mentir maior que a de
todos os meus outros camaradas, e uma grande habilidade de
surripiar nossos objetos escolares, selos, estampas e brinquedos.
Talvez o que me atraía para Laécio fosse a sua chácara, a sua
grande chácara onde devia existir a Arvore do Bem e do Mal,
chácara tão tentadora para mim.
Os fundos davam para o rio. Um dia, Laécio me chamou
para assistir o banho de umas negras. O espetáculo que se me
oferecia não me deixou nenhuma impressão menos pura.
As negras estavam ali tomando banho, negras novas do
Caípe que se lavavam debaixo dos ramos das ingazeiras arriadas
sobre as águas. Abriam bandós com os cacos de pente de chifre, e
como não dispunham de espelhos, ajudavam-se na tualete.
As molecas eram bonitas, ágeis e puras. Eu estava, apenas,
encantado de ver corpos negros, tão diferentes dos brancos,
embelezando-se ligeiros, antes de entrar nágua. Reparava que
aquele banho era diferente do banho de umas parentas, que me
deixaram uma vez esperando por elas, na beira do rio. As
brancarronas se penteavam depois do banho, cuidadosas, com a
toalha sobre os ombros, debaixo dos cabelos soltos. Mas as
molecas podiam, com uma ligeireza espantosa, se coçar,
espenujar, separar com os cacos de pente o cabelo lanzudo,
mergulhar na água transparente e sair outra vez sem que o cabelo
se desmanchasse; a água não lhes alterava a beleza. O contraste
daqueles corpos pretos e luzidios sobre a areia das margens ou
sob a espuma do sabão me impressionou bastante. Nunca tinha
visto espuma sobressair tanto, correndo ligeira nas costas escuras
ou descendo entre os seios espigados pelo ventre abaixo. Mais
ligeiros que a espuma, eram os seus braços harmoniosos.
Algumas com a cara ensaboada, sem abrir os olhos para evitar a
espuma, aparavam-na antes que ela se perdesse no chão. A
espuma grossa voltava outra vez para debaixo das axilas ou dos
ombros, esmagada de novo pelas esguias mãos. Outras se
ajudavam no ensaboamento esfregando as costas das
companheiras ou os lugares que os braços não atingiam. Achei
lindas as negras. Achei-as ágeis, diferentes. Mas Laécio me
advertira que era proibido vê-las assim nuas; e se elas soubessem
que nós as espreitávamos no banho, contariam a nossos pais e
estes ralhariam conosco e seríamos castigados.
Jorge de Lima, Novos Poemas: Poemas escolhidos, Poemas negros.
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