quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Rosa Maria Martelo


Ar

O bico da tesoura a levantar ligeiramente
a pele. E o ar da manhã. Todas as manhãs a
amanhecerem assim. «Um pouco dentro
de mais», poderá alguém dizer, talvez
pensando em sangue, ou carne viva. Mas
não é isso. A tesoura é aqui apenas uma
imagem, não serve para cortar, nem perfurar,
não deixa à vista mais nada que uma leve
sensação de atrito, já muito destilada:
uma porta aberta pela manhã - e o ar
muito fresco ainda, quase húmido. Sei que
ver é uma maneira de ser visto. Não uma
ferida, mas um estar a descoberto, e nem
sequer muito fundo, porque não há fundo.
Antes uma certa transparência da matéria,
sob a qual o sangue corre como fora corre
um rio.



A Porta de Duchamp, Averno.

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