À Anezinha
Quero impregnar-me de
gente, de paisagem portuguesa
Luiz Pacheco
Nesta
terra as mulheres crescem à sombra,
como
os cogumelos, o musgo ou a razão,
em
ponto de cruz a saudade vai sendo domesticada,
o
mais honesto e obediente animal puxado por uma trela dourada
feita de medo e outras coisas que ligam
o
seu viso tem a expressão de todos
e
é nestas caras quentinhas que descem ainda as lágrimas de Eros
mudando
por dentro o nome do continente, outra cara, possível Começo
sem
nome, sem coisa nenhuma, é às vezes o sal
que
cai destas caras que tempera o prato, porque todo o sal não chega
para
compensar o amargo que veio morar para a boca
cansada
de saber que a linguagem não chega
porque
eles fugiram, cada um em seu barco:
os
filhos
Nesta
terra as mulheres crescem à sombra
E
têm sombra nos olhos, que o eco veio pintar
a
lápis de cor por cima da paisagem humana
que
se aloja debaixo de tudo o que a alma espelha,
veias,
artérias, vasos, curvas fininhas que o tempo vai moldando
A
anatomia rasgando o cosmos à escala humana, soprando-o para longe
Transbordo
que a sede cria,
E
enquanto as filhas vão ao poço, sol, risos, perfeita anatomia
As
sombras crescem. Pequeninas rendinhas em baús
Terços,
santinhos, livros de areia, um dente de leite
o
fio de ouro a que está ligado,
e
são de sombra os seus gestos porque quando se movem
são
os braços de outros que ganham vida e retiram à paisagem
a
natureza para pôr nela a arte, a civilização, a linguagem e a vitória
a
mais alemã invenção,
e
o seu sorriso é uma espécie de Deus
e
quanto mais se enrola na paisagem mais deus é
Até
parece que a razão dorme dentro delas,
e
a razão dorme dentro delas – o capitão
do navio dá-lhes duas opções
Ou
embarcam no barco do amor ou embarcam no barco do amor
Mas
vão ter ainda de o Criar para o atravessar, e partir as árvores, da madeira
fazer o barco e calafetá-lo e dar-lhe um nome, e baptizá-lo, porque tudo aquilo
em que se toca também se é
A
sede vai-lhes toda para os olhos,
Urgente
era que as sombras saíssem, como o fumo adocicado dos pulmões
Para
dentro doutros pulmões.
Estas
mulheres seriam modelos se as estátuas de sono não dormissem dentro delas
Se
não fossem só alma,
O
planeta chama-as do centro, as rugas vão rasgando a sua pele
Mas
elas riem pouco,
E
há poucos jovens
Estão
todos no meio da Europa, Lisboa, Porto
Em
Lisboa está a arte e no Porto está a arte
E
no Couço está a arte e em todo o lado está a arte
Se
não fossem só alma teriam visto mais vezes o mar
Não
são filhas da revolução nem são filhas de ninguém
os
seus filhos estão todos na taberna e são mais
velhos que elas
À
noite estas sombras limpam com um guardanapo o beiço dos velhos
Porque
desce-lhes azeite pelos queixos, e esses guardanapos podiam ser a página 100
de
uma História Contemporânea, edição de luxo, a meio da investigação os eruditos
folheavam
o guardanapo em Lisboa onde está a arte ou no Porto onde está a arte.
Exportámos
marmelada para a Austrália ou para os armazéns de retalho da capital
que
importa se toda a geografia é interior? - Enquanto dormem até de deus são mães
E
entre as suas pernas as almofadas (penas de pato, segredos ou outros novelos).
As
suas casas são feitas de queda, de verticais os muros ganham contornos,
a
mais cara renda que são os dias a vir
formas
breves, novas formas, dias que incham
parecem areia soprada pelo fogo
com
que se faz o vidro e se embacia o
espelho
um dia também ele será inventado pelas mãos
quentes de um artesão etrusco
antes
mesmo de haver as moedas para o comprar
e
que levarão os nossos filhos para longe,
Para
o Canadá, Luxemburgo, Cantões,
nos
navios, nas bagagens, nos aviões, todos com o seu preço
calafetado
por dentro e por fora, impregnado na paisagem,
claves de sol pontilham a paisagem, por cima do trigo, a picotado
claves de sol pontilham a paisagem, por cima do trigo, a picotado
As
sombras destas mulheres são às vezes música, entra nos búzios
Não
só por nos lembrarem que elas provêm do sol,
como
tudo o que parte, mas por nos erguerem como o caule de um girassol
a
sua voz é a sua seiva, está dentro da nossa espinha, é o nosso equilíbrio
uma
balança onde se pesam as palavras que ficaram por dizer
Futura-te*
Também
a rede quer dormir mas não é da natureza das redes dormirem
e
a rede pede que lhe cortem as pontas, que tragam uma tesoura
E
alguém corta as pontas, mas as pontas crescem com mais força, como uma
estrela-do-mar, a tesoura é também informação e acrescenta-se à rede, tudo é
soma nesta nova anatomia
Coisas que entram
Abre
as portas, vem muita gente atrás e todos querem entrar em ti,
Entrar
é ser gente, crescer é ser rede,
homens
e redes nunca dormem verdadeiramente,
Em
Manchester as fábricas enchem-se de música e no Couço
cresce
o trigo dos latifúndios e todos estes homens precisam
de
equadores ao mesmo tempo que precisam de pólos
E
todas estas mulheres precisam um pouco mais de calor
Não
só para deixarem de ser sombras
mas
para saberem que de se descarrilarem se fazem novos caminhos
Nas
carruagens vai este gado
Já
não de ferro nem de vento são os caminhos em que é feita a viagem
Sem
pontes de aço, betão ou de cimento, só ultrapassagem
No
Portugal dos pequeninos os filhos que se vão perder em todos os continentes
das
suas perdas novos filhos nascerão: Filhos da revolução. Qual?
Na
natureza nada se apaga
Na
natureza não existe amanhã
Mas
o homem põe a manta da civilização por cima da natureza
e
por baixo da manta fica o escuro e alguns animais sem expressão
às
vezes fica também o riso,
a
razão fica a sobrevoar a manta
e
ficam mulheres debaixo da manta
danças
primitivas, ecos, sonhos,
capitães
de mar nenhum ficam também
debaixo
da manta a razão de ser da literatura,
definir
poesia é dar as mãos
Só
a gente e paisagem não desce para baixo da manta da razão
E
as mãos aquecem agora mais
Nuno Brito
Nuno Brito
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