quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Pedro S. Martins

Colónia


conheço a partida que fabrica o seu próprio adeus
enquanto continuo a pensar que partir é escrever
uma dezena de vezes “não gosto deste poema”
e aguardar pacificamente que o derradeiro
amadurecimento da escrita me bata no ombro,
como um cobrador numa camioneta e diga:
“o seu bilhete?”
tenho treinado para o obter. Todas as noites,
quando todos fingem não viver,
com as pálpebras cansadas
viajo para um corpo menos abatido
e lembro tudo o que por ali vai estando
vagamente esquecido.
não lhe chamaria mutação. Os operários
não se transmutam. Os barcos não
se transmutam. Eu sou a travessia operária
de costume em costume.
“o seu bilhete?!”
pálpebra aberta menino. Pálpebra
aberta sobre o rosto escuro. Simulando
alegrias e tristezas
sinto as veias
bombearem o que não é meu. Há-de
servir para responder
“está aqui” ao revisor.
“o seu bilhete!”
porque não vens comigo? Seremos seres
diluídos na trémula vivência dos outros,
correremos atrás do amadurecimento
da mão
como quem aguarda que as uvas pintem.
não tenho bilhete.
contudo, tenho alguém ao meu lado,
lúcida e apaixonada por quem sobreviverá
ao sono. A escrita deste poema? já disse,
não gosto deste poema, porque não gosto
de palavras que já foram utilizadas.
quem precisa da escrita quando o mundo está
a arder e as uvas a caírem num chão nu?
corpos sulcados com vista para um interior
luminoso. Sim, é isto
o importante.
vem comigo.
******

Pedro S. Martins, Revista Sin-ismo nº 1.

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